2006/09/21

Eça, as letras e os jornalistas

O Diário de Notícias oferece agora uma colecção de medalhas de portugueses famosos. Na edição impressa (mas não na edição electrónica), é incluída uma pequena nota biográfica sobre o homenageado. Na semana passada (creio que na sexta feira), calhou ser Eça de Queirós. O grande mestre da prosa novecentista era descrito como uma das figuras de proa do romantismo, o que já de si é um erro crasso, como qualquer aluno do 9º ano reconhecerá. Românticos eram Almeida Garrett ou Camilo Castelo Branco; Eça era um realista, como Balzac, Zola, Flaubert e outros.
Mas nem era este o único erro num texto de menos de dois mil caracteres. Numa passagem elogiavam a “riqueza” do vocabulário do Eça de Queirós. Ora se há crítica que é feita ao Eça de Queirós pelos seus detractores é a de ter um vocabulário algo limitado, recorrendo frequentemente aos galicismos (“chaminé” em vez de “lareira” e assim por diante). Mesmo admitindo que isso possa ser verdade, este facto realça no entanto a qualidade de Eça de Queirós que eu mais admiro: como consegue ser tão extraordinariamente sugestivo com uma tamanha economia de recursos. O uso por parte de Eça dos adjectivos e advérbios é o mais bonito que eu já vi. Mais do que nenhum outro romancista que eu conheça, a prosa queirosiana é uma obra de arte. E tudo isto com o referido vocabulário “limitado” e económico, características que eu aprecio num escritor. A escrita de Eça vale por si mesma, não necessita de adornos vocabulares pedantes e dispensa a consulta do dicionário. Eu nunca gostei de ir ao dicionário.
Assim encontramos, num texto simples de um jornal, dois erros de palmatória. Escritos provavelmente por um jornalista que teve muitas cadeiras de literatura (mais do que eu, que só tive o português do ensino secundário). No entanto, um bom aluno do 11º ano notará estes erros. Mas nem todos os alunos notarão. Esta biografia também será lida por estudantes da obra de Eça, que encontram assim no jornal de todos os dias uma contradição com aquilo que devem aprender na escola.
O editor de sociedade do Diário de Notícias, um rapaz que, calhando, até sabe calcular uns integrais e, se se esforçar, ainda inverte uma matriz, escreveu há tempos um artigo onde refere a falta que fazem melhores jornais. Tem razão, mas às vezes eu acho que também fazem falta melhores jornalistas.

3 comentários:

Fiambrelete disse...

Pronto, não era preciso teres escrito um texto tão grande só para dizeres que foste um bom aluno de 11º ano... Eh, eh, eh!!!

tacci disse...

Caro Filipe Moura:
Concordo que, ditas assim só, as afirmações não são nada claras e muito menos pedagógicas. Mas não são propriamente "erros": Fidelino Figueiredo, por exemplo, considera que Eça pertence a uma "segunda geração romântica", o que, recordando a primeira fase (antes da fase naturalista) de Eça, muitas das obras de Oliveira Martins e os poemas de Gomes Leal (A Senhora Duquesa de Brabante, p. ex.) não é nenhum disparate.
E, de facto, de toda a sua obra, só "O Crime do P. A." e "O Primo Basílio" podem ser consideradas "realistas". Todas as outras oscilam, atrever-me-ia eu a sugerir, entre o romantismo e um simbolismo sui generis. Quanto à pobreza do seu vocabulário, tínhamos muito pano para mangas: lembremo-nos, para dar só um exemplo, da criação da palavra "verborreia" que lhe é atribuida. Estou de acordo consigo em que a grande riqueza da linguagem de Eça se fica a dever mais à construção da frase do que ao simples vocábulo - como no Camilo ou no Aquilino. Mas daí a considerar que o seu vocabulário é "limitado" vai um passo que eu não ousaria dar.
Cumprimentos.

Filipe Moura disse...

Repare que eu mesmo não afirmei que o vocabulário do Eça era reduzido; falei em “economia de meios” (como elogio), o que não é necessariamente a mesma coisa. “Vocabulário limitado” era uma crítica que lhe faziam. Quanto ao romantismo vs. realismo, não há dúvida de que o Eça marca um corte com aqueles que são considerados os mestres do romantismo, mesmo que venha a evoluir ao longo da sua vida. V. com certeza está muito mais habilitado(a) do que eu a falar sobre o assunto, até pelos exemplos que dá. Mas lembro-me que nos Maias o João da Ega das “Memórias de um átomo” começa por andar sempre às turras com o ultra-romântico Alencar para no fim andar de braço dado com ele…
Obrigado pelo seu comentário.