2008/01/22

Lev Davidovitch Landau (1908-1968)


Nasceu há cem anos o maior cientista da extinta União Soviética e um dos maiores físicos do século XX. As suas contribuições são valiosíssimas, nomeadamente a teoria do hélio líquido e a superfluidez (que lhe valeram o prémio Nobel de Física em 1962), as transições de fase, mas também em praticamente todos os outros domínios da física teórica.
Para além do Landau cientista, merece reconhecimento o Landau formador. Em conjunto com o seu discípulo Evgueni Lifshitz escreveu o famoso Curso de Física Teórica, que ajudou e ajuda na formação de gerações de físicos (as actualizações após a sua morte foram sendo feitas por outros discípulos: V. Bérestetski e, principalmente, L. Pitayevski). Há outros “cursos sobre tudo”, como o de Arnold Sommerfeld (também muito bom, mas com mais de um século) e as famosas The Feynman Lectures on Physics, muito mais elementares e com um espírito completamente diferente. O Curso de Física Teórica de Landau e Lifshitz representava o mínimo que teria que saber alguém que aspirasse a trabalhar no grupo de Landau. Ainda hoje muitos dos tópicos lá explicados só se estudam ao nível de doutoramento! Exceptuando talvez o volume 4, de Electrodinâmica Quântica (que mal foi escrito por Landau), que hoje, sem estar errado (de todo), não representa a abordagem mais moderna ao assunto (podendo-se considerar ultrapassado por textos mais modernos de Teoria Quântica de Campo), o tempo não passa pelos outros volumes, que ainda hoje são referência utilíssima para qualquer físico teórico. Os volumes 1 (Mecânica Clássica) e 3 (Mecânica Quântica) são absolutamente indispensáveis, se não mesmo os melhores livros para um estudante de física aprender estes assuntos.
Quando entrei para o Instituto Superior Técnico ainda se encontravam nas livrarias os três primeiros volumes do curso, traduzidos para português e editados pela Editora Mir, de Moscovo. A União Soviética acabara há um ano, e pouco depois acabaria a Mir. Com os cérebros a escaparem todos, não houve tempo para acabar a tradução do curso para português. Havia ainda assim alguns dos volumes seguintes (o 5, o primeiro de Física Estatística, e o 8, Electrodinâmica dos Meios Contínuos) nas livrarias, nomeadamente na loja da antiga Central Distribuidora Livreira (que distribuía também as Edições Avante!), em Lisboa, na Avenida Santos Dumont. Comprei-os, e desde então o meu principal objectivo na vida passou a ser comprar todos os outros volumes, em francês, na edição da Mir. Tinha a esperança de que pudessem existir, à minha espera, esquecidos nalguma livraria. Cada vez que eu ia a uma cidade diferente, ia às principais livrarias à procura do Landau. A única vez que entrei na bela Lello na vida foi... à procura do Landau. E assim corri outras livrarias mais académicas de Portugal.
A salvação poderia vir do estrangeiro. Um grupo de amigos foi à Rússia, a São Petersburgo. Pedi-lhes para me arranjarem o que pudessem do Landau. A única coisa que me conseguiram foi um exemplar, que eu conservo com carinho, da Electrodinâmica dos Meios Contínuos... em russo! Dá para entender as fórmulas – a linguagem matemática é universal!
Dado que os livros eram em francês (as minhas grandes motivações para saber francês eram poder ouvir o Jacques Brel e ler os livros do Landau), experimentei a hoje extinta livraria do Instituto Franco-Português em Lisboa. Sem sucesso. Mas ao menos consegui a morada de uma livraria distribuidora em Paris (o equivalente à CDL portuguesa) que os poderia ter. Não sabia nada de Paris, e ignorava completamente o que fosse um arrondissement, mas guardei essa morada. Assim que soube que um outro colega ia a Paris, pedi-lhe que fosse à tal livraria procurar os “Landaus”. Sem sucesso mais uma vez.
Depois de uma procura tão demorada (cerca de dois anos), sempre sem encontrar a mínima pista dos livros que eu tanto desejava, eles “caíram-me ao colo”, vindos do céu (ou não sei de onde). Um dia muito tranquilo, vinha eu a passar à frente do Pavilhão Central do Técnico, e estava lá um vendedor ambulante com uma carrinha cheia de caixotes de livros da Mir, que expunha numa bancada improvisada. Entre os livros expostos estavam os “meus Landaus”; escusado será dizer que comprei os que me faltavam imediatamente. O vendedor era um ex-estudante da ex-União Soviética que andava a dar a volta às faculdades de ciências e engenharia do sul da Europa, a vender o stock que restava dos livros da Mir em francês, espanhol e português. Ainda hoje estou para perceber como é que aquilo sucedeu. Foi um autêntico milagre. Por ter conseguido o objectivo que tanto queria, esse dia de Janeiro de 1996 em que o mascate (não faço ideia de qual era a sua nacionalidade) apareceu no Técnico foi sem dúvida um dos mais felizes da minha vida.
Os livros da Mir eram excelentes e baratíssimos; para além disso, tinham sido fabricados na extinta União Soviética. O papel onde eram impressos era soviético; o pó que largavam, acumulado nos caixotes onde estiveram arrumados e esquecidos sabe-se lá por quantos anos, era soviético; a encadernação, excelente, era soviética; a contracapa, com um resumo do livro e das biografias dos autores, era soviética. No caso do curso de Física Teórica de Landau e Lifshitz, não faltava uma referência ao Prémio Lenine, atribuído àquele mesmo curso em 1962.
Quando comecei o meu doutoramento, nos EUA, tive de levar comigo alguns volumes do curso, que nunca tinha estudado durante a licenciatura, e escolhi cadeiras (nomeadamente de física estatística e física da matéria condensada) que me permitiam estudar o seu conteúdo. Tinha – e tenho – a opinião que um físico teórico deve, se não dominar perfeitamente, pelo menos ter tomado um contacto sério, ao nível de investigação, com todos os volumes do curso. Levei assim alguns dos meus “Landaus”, em francês e português, para espalhar e difundir por Nova Iorque o cheiro do seu pó soviético (não deveriam faltar certos candidatos a Dr. Estranhoamor que levariam a sério isto que eu estou a dizer como uma ameaça de conspiração qualquer). Qual não foi a minha surpresa ao verificar que em muitas das cadeiras de doutoramento os volumes correspondentes do Curso de Física Teórica de Landau e Lifshitz, o melhor que se tinha feito em física na extinta União Soviética, eram os livros de texto recomendados. A vantagem das universidades americanas, e no fundo a vantagem dos EUA enquanto país, resulta daqui: saber sempre reconhecer o que é bom. Os dez volumes do “Curso de Física Teórica”, aliás, “Course of Theoretical Physics”, existiam em várias cópias em várias bibliotecas de diferentes departamentos da Universidade, e podiam comprar-se em qualquer livraria como a Amazon ou Barnes and Noble. Publicados em inglês por uma editora capitalista. Quatro ou cinco vezes mais caros. E sem nenhuma referência ao Prémio Lenine.

5 comentários:

Maria disse...

São mesmo muito bons! Clareza q.b. e elegância. Eu também estudei por eles e ainda hoje, 13 anos depois, guardo religiosamente todos os volumes (em russo :))

tca disse...

Caro Filipe,

Tenho os volumes de mecânica clássica, mecânica quântica relativista e a não relativista. Tb como tu sempre que vou a qualquer feira do livro lá ando a esgravatar os sucessivos montes procurando, em vão, mais um volume para acabar a colecção.

Fiambrelete disse...

Creio ter comprado dois livros da colecção ao tal tipo que apareceu no pavilhão central. Se bem me lembro foste tu que me avisaste.

Filipe Moura disse...

Não terá sido a Ana que me traduziu um autógrafo que vinha na cópia que me trouxeram em russo da Electrodinâmica dos Meios Contínuos? O seu apelido é parecido com o meu? É a única Ana que eu conheço que é portuguesa e leu o Landau em russo!

Tiago, ou ele não passou pela Faculdade de Ciências ou tu não o apanhaste!

Fiambrelete, bons tempos!

Maria disse...

Não, não fui eu que traduzi o autógrafo. Nem o meu apelido é parecido com o seu. No entanto sou portuguesa e também li o Landau em russo :) Estudei na física na MSU como provavelmente a outra Ana.