Cartoon de Sam
O PREC português foi rico em episódios notáveis. Alguns ternurentos, como a formação de cooperativas e o assalto aos latifúndios. Alguns trágicos, como os atentados às sedes do PCP no norte do país, as redes bombistas, os assassinatos de militantes de esquerda. Alguns (muito) cómicos, como o primeiro-ministro que declara ao presidente da república encontrar-se “em greve”, que ser sequestrado era “uma coisa que chateava, pá” e, perante uma granada, que “era só fumaça” e “o povo era sereno”.
Todos estes episódios fazem parte da nossa história e, para quem os viveu, da memória coletiva. Mas são nossos, portugueses. O “Caso República”, de que passam hoje 35 anos, pelo contrário, é um episódio que merece ser estudado e meditado a nível internacional, nos cursos de Ciência Política, pelo que tem de fascinante e paradigmático.
No “Caso República” (os mais moços podem recordá-lo, ou mesmo aprendê-lo, aqui) estão em confronto a um nível elementar, e por isso bastante profundo, o capital, o trabalho, a liberdade intelectual e de imprensa e, sobretudo, as relações e hierarquias entre profissões diferentes. Para uma pessoa de direita, creio que o lado certo só pode ser um (mesmo se o jornal fosse afeto ao PS, como era!). Para uma pessoa de esquerda, creio que a resposta já não é nada óbvia. É claro que para os artistas Bastos o lado certo só pode ser o outro, sem discussão, e ainda hoje atiram essa questão aos interlocutores, como que para atestarem a “pureza ideológica”.
O jovem idealista que eu fui provavelmente teria estado do lado dos tipógrafos. Hoje, eu, que sou cientista e já fui jornalista, não poderia estar do lado deles. Seria o mesmo que admitir que os funcionários da secretaria ou os contínuos da universidade onde trabalho decidissem a minha investigação. Sejamos claros: se fossem jornalistas a protestar contra o rumo do jornal, tal seria válido e mereceria o meu apoio (e era o caso de uma minoria de jornalistas, como Fernando Assis Pacheco). Mas o “Caso República” tratou-se essencialmente de um protesto de tipógrafos, que nos dias de hoje não têm (e creio que jamais tiveram) assento no Conselho de Redação de nenhum jornal que eu conheça.
Como se poderia ter reagido ao “Caso República”? Provavelmente, na altura, não se poderia ter feito outra coisa. Mas seria aceitável que os tipógrafos fizessem valer a sua força desta forma, numa reivindicação muito para lá das suas questões laborais, pondo em causa a liberdade (é mesmo uma questão de liberdade) dos jornalistas? Para quem defende uma sociedade de livres produtores sem classes, a resposta não é óbvia: os tipógrafos estavam a mostrar a força do seu trabalho.
Creio que a resposta certa é dada pela História, se pusermos a questão: poderia o “caso República” ter lugar hoje? É verdade que uma greve de tipógrafos poria em causa a impressão de um jornal, mas hoje em dia há muitas outras maneiras de um jornal sair. Poderia não sair a versão impressa, mas sairia a versão online. Se os informáticos decidissem entrar também em protesto, de certeza que haveria entre os jornalistas aqueles com conhecimentos informáticos suficientes para porem uma versão online. Mesmo que fosse mais pobre. Mesmo que fosse sobre a forma de um blogue, por exemplo (hoje, provavelmente, em vez do “Jornal do Caso República” teríamos o “Blogue do Caso República”). A tecnologia hoje permite que os jornalistas só apoiassem o protesto se quisessem (e, repito, os jornalistas têm o direito a definir o conteúdo de um jornal, ontem, hoje e amanhã). Se quisessem. Não por serem coagidos pelos tipógrafos.
A História ensina-nos que há profissões que são profundamente alteradas e, por vezes, até extintas pela tecnologia (a do tipógrafo é um exemplo), enquanto há outras que, por muito que a tecnologia evolua, no essencial não se alteram (a de jornalista é um exemplo). É o progresso. É inexorável. Os profissionais do primeiro grupo têm obviamente direito a protestar sobre questões relacionadas com o seu serviço (agora já falando para além do “Caso República”), mas têm de ter o que escrevi em conta. Não devem deixar-se manipular para as suas lutas laborais terem outros fins políticos que não lhes digam respeito. É esta a lição que a História ensina a propósito do “Caso República”. Terá sido aprendida?
Duvido muito. Continua a haver quem manipule lutas para outros fins. Aos tipógrafos interessaria prepararem-se melhor e adaptarem-se de forma a serem sempre indispensáveis. Mas há a quem interesse que eles sejam sempre os mesmos tipógrafos. Tal como que as mulheres a dias sejam sempre as mesmas mulheres a dias. (Curiosamente, é nos países do norte da Europa, onde o sindicalismo é muito mais independente e as taxas de sindicalização muito mais altas, que há menos recurso a empregadas domésticas.) Talvez um dia estas mulheres protestem, e os manipuladores, se ficarem sem comer e com a casa suja, aprendam. Quanto mais não seja a cozinhar e a limpar a casa. Depois podem passar a imprimir um jornal.
Também publicado no Esquerda Republicana