Carlos Vidal não tem aquele dom tipicamente bushista (e de que eu tanto gosto) da transparência – “I mean what I say and I say what I mean”, como diria a desbocada matriarca Barbara (ou pelo menos a sua caricatura do Conan O’Brien). Vidal brindou-nos durante uma ou duas semanas com textos sobre a temática da arte “que não é para toda a gente”. Apontei algumas contradições nesses textos, mas escapou-me na altura a mais óbvia: dizer que algo não deve ser acessível a todos é a melhor maneira de despertar curiosidade sobre esse algo. É um recurso do artista que nos quer provocar. No fundo, o homem só quer que a gente ligue alguma coisa ao que ele escreve, e fica nitidamente nervoso se não lhe prestam a atenção de que se julga merecedor: recorde-se por exemplo até que ponto ele chegou só porque o Daniel Oliveira não lhe respondeu a um comentário no blogue.
A melhor coisa a fazer seria portanto o contrário daquilo que ele tão enfaticamente me pede, apesar de ser o contrário do que quer (estão a ver onde entra a cena dos Bush?): justamente, não lhe ligar nenhuma. Tentar não dar por ele. Passar por cima dos seus textos. No fundo, fazer como se ele não existisse.
Só que tal seria difícil (dado o estilo espalhafatoso do autor, cheio de imagens, negritos e maiúsculas, e a sua linguagem assumidamente populista). E mesmo que fosse fácil seria absurdo. Porquê? Simples: é evidente que quando lemos um blogue colectivo deve haver uma certa identidade entre os seus elementos. Aliás, o blogue deve ter uma identidade como um todo. Caso contrário, não faz sentido que as pessoas se juntem para escrever.
É claro que os membros de blogues colectivos não devem concordar em tudo entre si, e podem (e devem) debater, e mesmo polemizar. Mesmo assim creio que devem ter algo em comum. Era assim que eu concebia o Cinco Dias: um colectivo de pessoas de esquerda, de tendências diferentes, que fossem capazes de debater entre si. E é naqueles dois aspectos que surgem os meus problemas com Carlos Vidal. Para começar, há muito pouco que eu possa a dizer que tenho em comum com o senhor. Qualquer leitor do Cinco Dias poderá aferir isso, das divergências que temos tido e têm sido manifestas. Dos seus textos, os únicos com que posso dizer que estou minimamente de acordo são os recentes sobre o conflito israelo-palestiniano. É muito pouco como denominador comum para escrevermos no mesmo blogue, a menos que fosse um blogue exclusivamente sobre este conflito. Mas o principal problema tem a ver com o outro aspecto: a capacidade de debater. E creio não ser injusto ao verificar que essa capacidade em Vidal é praticamente inexistente. Tirando dois ou três louvaminheiros, Vidal não é capaz de ter uma conversa com um comentador sem lhe colar rótulos políticos, ameaçar censurar (por opiniões “impróprias”) ou mesmo insultar. Os insultos ocorrem principalmente quando Vidal faz a sua jogada preferida, que já deve ser conhecida de todos: foge do assunto em debate e desvia-o para a sua área de eleição (a arte). Mesmo que ninguém tenha falado, mesmo que ninguém queira falar de arte, Vidal faz questão de responder a todos os debates como se debates de arte se tratassem, para os assuntos que ele domina, para então poder fazer o que melhor sabe: aplicar “argumentos” de autoridade (que não são argumentos nenhuns) e chamar ignorantes aos seus interlocutores. Foi assim quando escrevi um texto sobre Manoel de Oliveira, um texto que não era de forma nenhuma destinado a Vidal e onde eu exprimia a minha perspectiva de amador perante a obra do cineasta (um direito inalienável que qualquer espectador tem). Vidal quis ver naquele texto uma crítica cinematográfica (algo que não era nem nunca pretendeu ser) e respondeu com a famosa série “a arte não deve estar acessível a todos”.
Um exemplo mais recente passou-se na reacção a este texto da Palmira Silva. O texto original não tem absolutamente nada a ver com arte mas que foi logo atacado nos comentários por Vidal como se tivesse (leiam e confirmem). Nos exemplares comentários de Vidal (que Sokal gostaria de ler) podem ler-se afirmações deliciosas como “Quando estou por Londres ou Paris, o que se lê é Deleuze, Foucault, Derrida e não Sokal. Pelos vistos, Sokal, agora inesperadamente desenterrado (vá lá saber-se porquê) não existe em lado nenhum.” Ou “Sokal, ele está esquecido e Lacan ou Deleuze ou Derrida são dos autores mais importantes em qualquer ramo de estudos nos Estados Unidos e ocupam mais de metade das estantes de filosofia entre Londres e Nova Iorque, etc, etc. Felizmente, sinal de inteligência. Sokal, zero. O obtuso já desapareceu. Finito. ZERO !!”
Recorde-se que quem escreveu isto (ou, noutra parte, “Fico a saber que de arte e estética contemporânea nada sabem. (…) Passem pelo Prado e vejam o Rembrandt, que é o que deveriam fazer para respeitarem os outros e aquilo que não sabem. Ou comecem pelo Giotto, já agora. (…) Vão-se lixar com o vosso Sokal”) insurgia-se contra a arte “popular” e os artistas que são apreciados por multidões mas que não deveriam ser para todos (mas pelos vistos a popularidade já serve se for para avaliar “os livros que se lêem” em Paris ou Londres ou Nova Iorque). Mas o mais engraçado é a forma deste artista avaliar um cientista: para Vidal, a forma de um cientista provar que está vivo será não escrever artigos, dar palestras e ser citado pelos seus pares (algo que Sokal continua a fazer muito bem), mas vender uns livros que sejam discutidos em círculos filosóficos! (Para governo de Carlos Vidal o caso Sokal continua bem vivo e tem tido novos desenvolvimentos – ver a cronologia completa aqui.)
A questão abordada pela Palmira neste texto – o combate ao obscurantismo resultante do relativismo pós-moderno - é para mim de extrema importância. É que não é só nos mercados financeiros especulativos que há fraudes. Neste caso trata-se de uma denúncia de fraudes intelectuais. Para mim este é um combate político absolutamente prioritário, e é-me difícil partilhar um blogue com quem a ele se oponha, principalmente da forma tão veemente como Vidal o faz. Para além de, em termos estritamente pessoais (e profissionais), ser-me difícil partilhar um blogue com quem julga – escreveu-o duas vezes, aqui e no Jugular – que “Badiou, como Cavaillés, Albert Lautman (…), são filósofos matemáticos (alguns só matemáticos) que sabem mais - tecnicamente - de matemática que todos os matemáticos cá do burgo juntos.” (Paul Cohen já é outro nível, mas desse não falou Sokal.) Há limites mínimos de respeito; quando não existem por parte do nosso interlocutor, não adianta manter uma discussão. Para além de que em matemática, e em ciência em geral, não estamos habituados a esse tipo de “argumentos” de autoridade. Pelo menos a avaliar por Vidal, esta é uma diferença fundamental entre ciência e arte. Dito isto, é claro que esta opinião é risível, e muita gente se vai rir dela. Como já disse várias vezes, visto de fora Carlos Vidal é muito cómico. Quem não o consegue ver de fora… deve sair.
Para que fique bem claro, e em resumo: o meu problema com Carlos Vidal nem são propriamente as suas posições (políticas e não só), apesar de eu discordar totalmente de grande parte delas. Não teria problemas com posições divergentes se Vidal as soubesse defender. O problema é que Vidal apresenta as suas posições num estilo populista sem nunca se preocupar em argumentar para as defender, e quando confrontado é nítido que não sabe debater (algo que – já o escrevi e reitero – é característico de muitos sectores do meio académico português: não é só Carlos Vidal). O meu problema com Vidal, bem mais do que de opiniões, é de estilo. Afinal o estilo sempre serve para alguma coisa!
Dito isto, e porque Carlos Vidal é membro do Cinco Dias, não estou disposto a continuar a pertencer a este colectivo. É uma decisão difícil, porque aqui encontro pessoas com quem é um prazer partilhar um blogue. Era isso que ainda me fazia hesitar. Ainda no passado fim de semana, após me ter encontrado com o Nuno Ramos de Almeida, não pensava tomar esta decisão. Digamos que a questão do Sokal me fez ver claramente que o equilíbrio que o Nuno nos pedia (a mim e ao Carlos Vidal) era instável e na prática impossível de alcançar, a menos que eu não escrevesse o que quisesse escrever (algo que nunca ninguém impediu ninguém no Cinco Dias) ou declarasse sistematicamente “para mim, o Vidal não existe”. Em ambos os casos é melhor sair. Deixo um abraço a todos os outros colegas de blogue e um especial ao Nuno, que me convidou e a quem serei sempre grato. Nuno, desculpa qualquer coisa mas, convenhamos, depois disto, se eu não saísse doentinho seria eu.
2009/01/02
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2 comentários:
Não faz mal Filipe. Continuo a ler-te aqui, que é o teu espaço verdadeiro.
Um abraço e bom 2009
“Os mongóis inventaram o pólo a cavalo, mas na altura em vez de usarem a bola, usavam as cabeças dos Ocidentais” – Kitéria Bárbuda in “Balatuca, o Mourinho de olhos em bico”, Revista “Espírito”, nº 29, 2006.
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