2007/11/02

A lição da África do Sul

A África do Sul, pese os problemas graves que se mantêm, está infinitamente melhor do que todo o continente africano e, sobretudo, conseguiu essa proeza impensável de sair do regime intolerável do apartheid por via pacífica e democrática, evitando a guerra civil e a desforra dos negros contra os brancos, como sucedeu no vizinho Zimbabwe. No Zimbabwe, o racismo negro determinou a expulsão e o confisco de todas as terras dos brancos, conduzindo à ruína alimentar, à fome e à miséria o que fora o mais próspero território agrícola de África. Sob o comando desse criminoso corrupto e sanguinário que é Mugabe (que Sócrates insiste à viva força em deixar vir à cimeira Euro-África de Lisboa), o Zimbabwe transformou-se num quadro de terror e de devastação humana que, mesmo em África, ultrapassa tudo o que é tolerável. A África do Sul, pelo contrário, teve a sorte de encontrar em Nelson Mandela um líder que, em lugar do ressentimento e do ódio, que até seriam compreensíveis, demonstrou, desde o primeiro dia no poder, que buscava antes o perdão, a reconciliação e a prosperidade para o seu país.

O que vimos neste Mundial de râguebi, com o triunfo de uma selecção sul-africana composta essencialmente por brancos e mulatos, não seria, obviamente, possível de acontecer no Zimbabwe. E, infelizmente para o seu povo, que não tem culpa dos dirigentes que tem, o Zimbabwe nunca será conhecido por estas ou outras boas razões e nunca beneficiará, à escala planetária, de uma tão boa promoção como a que a África do Sul ficou agora a dever à sua selecção de râguebi.

O triunfo da África do Sul ensina-nos uma lição que só os ditadores, os racistas e os particularmente estúpidos se recusam a ver: que África não é dos negros, nem dos brancos, como se proclamava até aos anos sessenta, nem dos árabes, como se garantia antes disso. África é dos africanos, independentemente da cor da pele: dos que lá nasceram, lá criaram raízes e lá pretendem morrer. Não há nada mais redutor e idiota do que querer julgar a História à luz dos critérios políticos e de justiça social contemporâneos. Até meados do século XX, a história das nações não foi mais do que a história das conquistas e das derrotas e das sucessivas migrações dos povos a elas associadas. Querer negar que os europeus fizeram e fazem parte de África é o mesmo que negar que os mouros fizeram parte da história da Península ou que os negros de África fizeram, forçadamente, parte da história do Brasil. O que aconteceu, aconteceu porque foi inevitável e até natural, pelos padrões da época. Ser anticolonialista é perceber justamente que o que era natural e tido como legítimo dantes, deixou de o ser depois. Não é pretender ajustar contas com a História, perseguir os que ficaram para trás por amor à terra onde nasceram (e muitas vezes sem outra a que pudessem chamar sua) e transformar a independência conquistada a ferros numa oportunidade espúria para uma vingança fora de prazo, de que os povos autóctones acabam, a maior parte das vezes, por ser as maiores vítimas.
(Miguel Sousa Tavares, A Bola, 2007/10/23)

5 comentários:

Luis Rainha disse...

Mais um amontoado de lugares-comuns, respigados dos jornais da véspera. Então em África não há países que lá vão fazendo a sua vidinha longe das parangonas? Como o Botswana, só por exemplo.

Filipe Moura disse...

Tu e o teu mau feitio, Luís... :)

JSA disse...

também me parece um bocado de treta a parte do exemplo da áfrica do sul. de todos os jogadores da selecção, apenas seis são negros ou mulatos e desses, apenas dois têm apelidos "africanos", Habana e Ndungane. A áfrice do sul foi um exemplo com mandela, nisso o MST tem razão, mas não os tornemos o maior exemplo do continente. Nisso o Luís tem absoluta razão.

Filipe Moura disse...

Luís e João, eu acho que vocês estão a resumir o conteúdo do texto à primeira frase:

"A África do Sul, pese os problemas graves que se mantêm, está infinitamente melhor do que todo o continente africano..."

como se não se dissesse mais nada, ou essa referência a "todo o continente africano" fosse essencial para o resto do texto. Não é: o texto compara a África do Sul com o Zimbabué. E tem uma frase - sobretudo uma - que eu acho que vale a pena guardar:

"Não há nada mais redutor e idiota do que querer julgar a História à luz dos critérios políticos e de justiça social contemporâneos."

Se transcrevi o resto do texto e não a frase isolada foi para contextualizar.

Luis Rainha disse...

"transformar a independência conquistada a ferros numa oportunidade espúria para uma vingança fora de prazo, de que os povos autóctones acabam, a maior parte das vezes, por ser as maiores vítimas." Baboseiras neocolonialistas pintadas de boas intenções e suposto senso comum.
Sim, tenho mau feitio, mas ando na terapia.