2008/09/09

Os media e a física fundamental

Pretendemos, sem ser exaustivos, reflectir sobre a cobertura por parte dos media de algumas notícias relativas à fisica fundamental.
Tomemos como exemplo o badalado reconhecimento, por parte do conhecido astrofísico Stephen Hawking, da sua derrota na famosa aposta (de uma enciclopédia de basebol) com John Preskill sobre a conservação da informação após a evaporação de um buraco negro, no verão de 2004. Na extinta Grande Reportagem, em conjunto com a notícia foi apresentado um resumo biográfico de Hawking, com as principais datas da sua vida. Desse resumo constavam as datas relativas à sua doença, a publicação do seu livro, a aposta com Preskill. Nem uma só palavra sobre os seus enormes sucessos científicos! Nada era dito sobre o que tornou Hawking reconhecido pelos seus pares e que lhe dará um lugar na História da Ciência, que não tem nada a ver com a sua doença ou os seus livros – os teoremas de singularidades, com Roger Penrose, e a radiação dos buracos negros! Os aspectos científicos eram o menos importante nesta biografia do cientista.
Um exemplo mais recente é o da publicidade nunca vista acerca da publicação de um preprint (artigo disponível na internet, sem arbitragem científica) por parte de Garrett Lisi, em Novembro de 2007, com o sugestivo título Uma Teoria de Tudo Excepcionalmente Simples. Apesar de toda essa publicidade, mais de oito meses passaram e o artigo ainda não foi aceite por nenhuma revista da especialidade. Nestes oito meses o artigo conta somente com seis citações (há artigos que atingem tal marca em menos de uma semana, e sem publicidade nenhuma na comunicação social). A única dessas citações que corresponde a um artigo efectivamente publicado tem como co-autor o consagrado Sergio Ferrara, um dos inventores da supergravidade, premiado com a medalha Dirac em 1993, e refere-se ao modelo de Lisi só para o qualificar como “sem futuro”.
Note-se que não pretendemos contestar o valor de Lisi enquanto cientista; independentemente do destino que a História reservar à sua proposta, ninguém põe em causa o seu mérito ao apresentá-la. Tão-pouco pretendemos julgar cientificamente e de uma forma definitiva a sua proposta; uma vez mais, só a História o fará. Mas do que não restam dúvidas é que, como esta proposta, há muitas outras mais, só que nenhuma mereceu tal atenção da comunicação social. A proposta de Lisi teve grande destaque nos principais jornais de referência mundiais, sendo inclusive a capa de uma prestigiada revista francesa de divulgação científica, que lhe dedicou um dossiê especial. Como explicar tal atracção da comunicação social por um trabalho que, até agora, e segundo os usuais critérios científicos, se revelou tão pouco relevante?
Uma explicação reside no facto de Lisi ser um físico fora da universidade; vive num lago no estado americano do Nevada, totalmente isolado do mundo académico e dedicando grande parte do seu tempo aos desportos radicais. Tem um perfil bem diferente do cientista tradicional, tal como Gregory Perelman, o matemático que resolveu a conjectura de Poincaré (um resultado também disponível na internet e nunca publicado em nenhum jornal). Só que o trabalho de Perelman, premiado com a medalha Fields em 2006, é reconhecido unanimemente por toda a comunidade científica, o que está muito longe de acontecer com o trabalho de Lisi. Talvez algum público tenha visto em Lisi um novo Perelman, mas cremos que o principal motivo de interesse jornalístico não é esse.
O principal motivo, a nosso ver, é o mesmo que justifica que a perda da aposta por Hawking tenha mais interesse que os seus enormes sucessos científicos: na Física fundamental, essa ciência ingrata, a razão para a notícia é sempre o fracasso de algo. A principal novidade, para o leigo, da Teoria da Relatividade, mais do que o trabalho de Einstein, era o fracasso da mecânica de Newton. No caso de Hawking, o fracasso seria mais o seu, o de um cientista que já teve muitos sucessos que não foram notícia, ao perder a aposta (se a tivesse ganho, o fracasso seria muito maior: seria o da mecânica quântica!).
No caso de Lisi, o sucesso da sua teoria seria o fracasso das outras tentativas de quantizar a gravidade, nomeadamente (e principalmente) a mais mediática: a Teoria de Supercordas. Mas estas teorias estão longe de poderem ser vistas como acabadas ou definitivas; no entanto, frequentemente são apresentadas como as “teorias de tudo” ou as “teorias finais” em livros de divulgação. São por isso vítimas do seu próprio mediatismo, tornando-se um “alvo a abater”. Só que se as teorias de cordas não são comparáveis à mecânica newtoniana, muito menos o modelo de Lisi é comparável à relatividade. É muito positiva e desejável a atenção do público à Física fundamental, mas a discussão tem que ser mais séria e não ter como principal objectivo o de vender livros ou jornais.

Publicado no nº 3 do volume 31 da Gazeta de Física

6 comentários:

JSA disse...

Discordo Filipe. Creio que são coisas diferentes. Hawking é famoso porque anda de cadeira de rodas eléctrica, tem um computador que fala por ele e que foi inicialmente construído pelos (ou com ajuda dos?) seus estudantes e porque tem a cátedra que pertenceu em tempos a Newton (como se nunca tivesse pertencido a mais ninguém).

Lisi tornou-se famoso porque é surfista e pratica outros desportos e porque apresenta uma teoria que parece ser mais simples de apreender (não de compreender) que as outras, dominantes.

O destaque dos media surge por motivos que estão quase sempre ligados à compreensão dos jornalistas. Se compreenderem a teoria, tentam falar dela. Se não a compreenderem, procurarão, no máximo, factos de interesse (desportos radicais, doença, etc). O que dizes tem alguma lógica, mas não no sentido de derrota, antes de notícias bombásticas. Um cientista que, sozinho, fora dos meios tradicionais, resolveria grandes problemas da física. Isso seria bombástico. Especialmente se a teoria é simples. Nota como os programas de divulgação científica estão sempre a falar da falta de uma equação simples como E=mc2 (como se esta resumisse a relatividade).

Simplicidade, estórias (no sentido "anecdote" em inglês) e sensacionalismo. São esses os motivso de interesse para os jornalistas. O resto não é, porque os leitores não os irão ler (julgam eles).

Filipe Moura disse...

"O destaque dos media surge por motivos que estão quase sempre ligados à compreensão dos jornalistas."

Não creio apesar de tudo que os jornalistas tenham compreendido a "teoria" do Lisi...

"Simplicidade, estórias (no sentido "anecdote" em inglês) e sensacionalismo. São esses os motivso de interesse para os jornalistas."

É o que eu digo!

Unknown disse...

Só faltou aí referir o caso mais mediático de todos para o público português - João Magueijo. Independentemente da validade das suas teorias, já perdi a conta a quantos artigos/reportagens vi nos meios de comunicação portugueses, anunciando-o como "o físico português que ameaça destronar Einstein". Claro que neste caso junta-se o tradicional bairrismo da imprensa portuguesa; só os mavericks cá da terra é que merecem grande destaque.

Luís Aguiar-Conraria disse...

Filipe, este comentário é para me queixar por ainda não teres escrito um post sobre o LHC no CERN.
Fica registado o meu protesto. Abraço.

Filipe Moura disse...

Sérgio, olha que não é só em Portugal que o João Magueijo teve - teve, em tempos - destaque. Quem lhe deu esse destaque foi exactamente a mesma pessoa que agora deu destaque ao Garrett Lisi - o Lee Smolin.

Luís, obrigado pelo teu interesse, mas não há tempo de momento para mais...

Luis Rainha disse...

E porque não afixas isto lá na outra tasca?