Havia quem não gostasse das homilias do padre João Resina, que morreu no dia 3, em Lisboa. Quando passou pela paróquia de Santa Isabel, em Lisboa, era escutado por agentes da PIDE, polícia política do Estado Novo, que tentava apanhá-lo nas críticas ao regime.
Os agentes colocavam-se junto das colunas de som, com gravadores. O padre João decidiu fazer o mesmo, para que a PIDE não inventasse acusações: escondia um gravador sob o altar. Antes do fim da missa, tirava discretamente a cassete e guardava-a.
"Nunca em Santa Isabel houve tanta PIDE", recorda ao P2 José Maria Fontes, de 79 anos, sacristão durante 39 anos, até Janeiro de 2000. "Ficavam perto das colunas." Ainda assim, João Resina não foi molestado pela polícia política.
Vários amigos passaram a gravar as homilias. Já em democracia, alguém lhe pediu que escrevesse uma síntese. No final das missas, o padre passou então a dar, a quem pedia, a folha com o resumo. O hábito deu origem aos dois volumes de A Palavra no Tempo (ed. Multinova e Entrelinhas, respectivamente), que recolhem muitos desses textos.
João Manuel Resina Rodrigues nasceu a 5 de Outubro de 1930, em Carnaxide (Oeiras). Em 1953, licenciou-se em Engenharia Química no Instituto Superior Técnico. Só depois decidiu ser padre: foi ordenado em 1959. O gosto pela ciência fê-lo regressar ao Técnico, onde deu aulas durante 30 anos e integrou o Centro de Física da Matéria Condensada. Publicou várias obras sobre Física e História e Filosofia das Ciências.
Augusto Moutinho, de 71 anos, professor da Universidade Nova, foi seu colega no Técnico entre 1974 e 1979. "Apaziguava muitas coisas que, nas universidades, são sempre difíceis de resolver", recorda. Mas era, sobretudo, um homem de ciência. E ultimamente, conta, andava "muito entusiasmado" a traduzir os Princípios, de Isaac Newton.
Em entrevista à Pública, a 8 de Abril de 2007, João Resina dizia: "Uma coisa é tentar compreender o universo. Para isso há a Física e a Biologia. Se quero saber se houve ou não big bang, se a vida evoluiu, não pergunto à Igreja, que não tem competências nessa matéria. (...) A terceira pergunta é o que me é lícito esperar, qual o sentido de fundo disto tudo. Aí, encontro a questão de Deus."
Em 1969, na Bélgica, doutorou-se também em Filosofia. Enquanto padre, a sua acção desenvolveu-se na área de Lisboa: Moscavide, Belém, Santa Isabel, capelas do Rato e das Amoreiras, Cruz Quebrada e Campo Grande. Nesta última paróquia, coordenou a catequese infantil. "Tinha a intuição rara de que é uma fase muito importante e que não devia ser entregue apenas a senhoras bondosas", recorda Helena Presas, de 52 anos, responsável da catequese.
"Achava que devíamos falar às crianças de questões como a sexualidade e a ciência, antes de elas aparecerem" na escola. Não aceitou os catecismos nacionais, por "não corresponderem às problemáticas dos miúdos". Por isso, foi fazendo adaptações, com a equipa, hoje com 60 pessoas.
Respeito pelas crianças
Helena Presas foi uma das pessoas chamadas por ele, tinha então 32 anos. Por causa disso, fez o curso de Teologia e deixou a profissão de fisioterapeuta. "Estimulava a estudar, formatou uma equipa", sem nunca recusar a ajuda de quem aparecesse.
Não queria crianças infantilizadas. Pedia que não cantassem coisas como "guiados pela mão de Jesus". "Dizia para mudar a letra, porque Deus quer pessoas livres, não guiadas pela mão. Fazia-o por respeito às crianças." Não sendo emotivo, gostava de levar as pessoas à fé pela beleza, pelo ritmo, pelo cuidado dos textos, recorda ainda a catequista. E discutia tudo à exaustão, incluindo modos de integrar os pais e de levar as crianças a realidades sociais diferentes: idosos isolados, pobres, crianças de bairros degradados...
Nas missas dos mais novos, queria que houvesse alegria e que os gestos os envolvessem. "Adaptava os textos para que a linguagem se percebesse." Palavras como alegria e amor eram repetidas nos curtos sete minutos que as suas homilias, enxutas, duravam (várias delas estão disponíveis em http: /www.igrejacampogrande.pt/liturgia_palavra.html). Não se inibia de reprovar opções da própria Igreja - numa das últimas homilias criticou a diplomacia do Vaticano. E condenava a economia baseada no lucro, que deixa tantos de fora.
Uma queda, a 17 de Dezembro, pô-lo em coma, que uma cirurgia arriscada não evitou. Quatro dias antes, na última homilia, falara da alegria do Natal: "Houve tempo em que a religião parecia apostada em matar a alegria. Aquele tempo em que os pregadores em tudo viam pecado, só se entendiam com mandamentos e castigos, não acreditavam que a alegria e o bem pudessem andar de mãos dadas. A Bíblia é mais sensata. (...) Quem ama a sério cumpre o bem, e portanto os mandamentos, de maneira espontânea e superior. (...) À medida que crescemos para a vida e para Deus, o amor e a alegria podem andar cada vez mais de mãos dadas."
2010/06/15
"Padre João Resina: o engenheiro de Deus"
Por António Marujo, Público, 11.06.2010
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