2006/11/23

Uma boa medida: a regulação dos horários das televisões

Não quero com isto julgar ou dar a entender que sou de alguma forma “autor” do recém apresentado projecto de Lei da Televisão, mas não me lembro de alguma vez ter lido alguém defender uma ideia semelhante antes de mim. Foi em Fevereiro de 2003, no então recém-formado Blogue de Esquerda. Eu encontrava-me nos EUA a concluir o meu doutoramento. A propósito de um artigo no Público do Daniel Oliveira, que então ainda era o “prolixo” (para verem há quanto tempo isto foi), decidi comparar a televisão norte-americana com a portuguesa. Em termos de conteúdo eram bastante semelhantes (vivia-se a época de ouro dos reality-shows), por vezes a norte-americana conseguia ser bastante pior, mas eu preferia-a de longe. Porquê? Por uma razão muito simples: quando eu queria ver um determinado programa, via-o ou gravava-o. Ao contrário da televisão portuguesa, eu nunca me senti defraudado pela norte americana. O melhor é mesmo eu repetir aqui o que então escrevi. Leiam por favor com atenção.

Gostaria de apresentar uma proposta sobre a regulação da televisão. Para quem vive nos EUA, a principal diferença na televisão relativamente a Portugal reside no facto de os horários dos programas serem sempre cumpridos. Não importa se durante o dia se tem programas tipo "O Juiz Decide" em praticamente todos os canais; se se tem o "Jerry Springer" e outros shows tais que me levem a recear que em Portugal se esteja apenas na Idade da Pedra do telelixo; se se tem intervalos comerciais a cada dez minutos. A verdade é que também se tem todos os dias episódios (antigos, é certo) do "Seinfeld", dos "Amigos" e dos "Simpsons", novelas brasileiras (dobradas em espanhol) como "O Clone" e a "Esperança", sempre à hora marcada. E tudo isto, refira-se, nos canais de acesso gratuito (acessíveis a quem tenha antena); não estou a falar de canais por cabo. A grande diferença é que nos EUA um espectador só vê o telelixo se quer, pois sabe que a programação que foi anunciada (nos jornais, nas revistas, na internet e na própria televisão) é a que é transmitida. A "contra-programação", o prolongamento de novelas por horas enquanto no outro canal está a dar desporto, aqui seriam impensáveis. Muito menos a interrupção de telejornais com directos do "Big Brother"! A verdade é que as estações de televisão, aqui, têm muito mais respeito pelos espectadores! A principal restrição que as emissoras de televisão em Portugal deveriam ter - e isto teria de ser o Estado, a tal "entidade reguladora", a fazer, mais do que propriamente interferir nos conteúdos - era a obrigação de cumprir os horários. Só isto alteraria substancialmente - para melhor - o panorama audiovisual em Portugal.
É só isto e não mais do que isto que eu defendo. O que invalida por completo os argumentos pseudo-liberais do Blasfémias, onde Carlos Abreu Amorim começa logo a acenar com “critérios específicos de programação” ou “definição de alinhamentos”. Nada disto está em jogo no presente diploma, que visa somente um respeito pelo tempo perdido pelo espectador a ver o que não quer ver.
É curioso que este argumento venha de quem vem: justamente um dos maiores queixosos dos atrasos da TAP, a transportadora aérea estatal. Também já usei a TAP com regularidade e, embora não ponha em causa o testemunho do CAA, da minha parte só uma única vez (em muitos vôos) tive problemas com atrasos. Mas o CAA que tanto se preocupa com a perda de tempo por causa da TAP (quando os atrasos são muito mais justificáveis numa transportadora aérea do que numa estação de televisão), não quer saber do mesmo tempo perdido pelos telespectadores. Talvez porque a TAP é... estatal? Se a TAP fosse privatizada, talvez os atrasos fossem justificáveis? Talvez o presente diploma fosse aceitável se só se aplicasse à RTP? Ah, como é difícil ser liberal em Portugal, com um governo que se imiscui nas estações privadas... É isso?
Nos comentários ao meu texto de ontem, o Luís Rainha e o Luís Aguiar Conraria questionam-me sobre se “o governo tem mais do que se preocupar do que andar a brincar aos horários das televisões?” O Luís Rainha afirma mesmo que são textos como o meu (e portanto, presumo, medidas destas) que “dão mau nome à Esquerda; e razões a quem diz que somos um bando de palonços.” A mim não me interessa minimamente se esta é uma medida “de esquerda”, ou “de direita”, ou se é “pouco ou nada liberal”. Parece-me uma medida justíssima, e defende-la-ia qualquer que fosse o governo que a aplicasse. Um bom governo vê-se (também) por medidas destas, que melhorem a qualidade de vida de cidadãos (neste caso) indefesos. Quando o Luís Rainha ainda por cima me pergunta “e a contraprogramação é má porquê?” eu nem sei o que responder. Se o Luís Rainha, o Luís Aguiar Conraria ou o CAA não vêem televisão (ou só vêem canais por cabo) é um direito que eles têm. Mas deveriam compreender que há pessoas que querem ver os canais generalistas e que como tal devem ser por estes respeitados.

11 comentários:

Luís Aguiar-Conraria disse...

Obrigado pela resposta. Permite-me que insista.
Não te parece que uma acção legislativa deve ter um fundamento muito mais forte do que o que apresentas?
Reparas como esse tipo de argumentação pode justificar toda e qualquer intervenção governamental? Desde a quantidade de farinha que os pães levam até ao número de cães que cada um de nós pode possuir?
Objectivamente falando, quando nem as actuais lei que regulam o audiovisual são cumpridas, que sentido faz que se criem mais leis, apenas com base na argumentação de que gostas de saber qual a programação da televisão?

Filipe Moura disse...

Olá Luís.
A quantidade de farinha no pão já está regulamentada, tal como a de cacau no chocolate. É para isto que há técnicos, cientistas, engenheiros químicos, nutricionistas.. Nem tudo é livre arbítrio. Nem tudo deve ser decidido pelo mercado.
Não sei se deve haver limites ao número de cães que possuímos; deve haver, seguramente, por exemplo ao número de apartamentos. Creio que é claro, mas deixa-me afirmá-lo mais uma vez: eu não sou liberal e gosto de governos interventivos.
Partamos do pressuposto de que achas o objectivo da lei justo (se não o achas, não vale a pena continuarmos a conversa). Diz-me lá tu então como se deve atingir este objectivo sem uma lei destas?

Luís Aguiar-Conraria disse...

"Partamos do pressuposto de que achas o objectivo da lei justo (...). Diz-me lá tu então como se deve atingir este objectivo sem uma lei destas?"

Possivelmente, bastaria a RTP (televisao estatal) assumir essa politica televisiva. Muito provavelmente ao fim de um ou dois anos, todas as televisoes estariam a respeitar os horarios, pois as televisoes estatais servem de benchmark na percepcao de qualidade dos consumidores.
Se a isto acrescentares uma fiscalizacao razoavel das leis que ja' existem, como o controlo dos tempos de publicidade, muito, mas muito provavelmente, o assunto ficaria resolvido sem ser necessario ninguem andar a escrever decretos-lei sobre o assunto.

Filipe Moura disse...

A RTP há muito que não influencia nada no panorama audiovisual. Deixou de ser a estação "de referência" - não é como a PT!
Pessoalmente acho muito mais importante esta regulação do que a proposta pela Lei da Publicidade. A publicidade, sim, acredito que se auto-regule. O mercado para isso serve. Mas não serve quando toda a gente se porta mal.
De resto temos concepções bem diferentes sobre o papel dos governos. Mas isso não é surpresa, pois não?

Luís Aguiar-Conraria disse...

“Mas isso não é surpresa, pois não?”

Não, não é. Mas confesso, e não leves isto a mal, fico um pouco chocado por ver como há pessoas inteligentes que defendem ingerências governamentais por dá cá aquela palha. Tu argumentas como se o ónus da prova não estivesse do lado de quem defende ingerências governativas na vida das pessoas.
Parece que tu acreditas que um qualquer secretário de estado sabe o que é melhor para nós. É um pouco assustador.

Filipe Moura disse...

Isso certamente deve discutir-se caso a caso: não aceito automaticamente qualquer ingerência do governo em qualquer assunto. Mas parece-me evidente que qualquer espectador de televisão quer ver o que lhe é anunciado, às horas a que lhe é anunciado. Basta ser espectador de televisão; não é preciso ser secretário de estado. A situação actual é catastrófica, e eu apresentei as provas no que escrevi!...
Bom fim de semana e obrigado pelos teus comentários.

Aspirina B disse...

A cada post, lá te enterras um pouco mais. Esse paralelo com a TAP, então, é um primor: pagarás tu bilhete, a bom dinheiro, para ver televisão?
Não consegues mesmo ver as posições insustentáveis em que te colocas?

JSA disse...

Pessoalmente discordo de uma posição tão interventiva Filipe. Nao me importaria que existisse algo que realmente "obrigasse" as televisões a cumprirem horários, mas não isso é uma questão de ditadura (pessoal, nota) do gosto. Embora concorde contigo no que diz respeita à RTP não ser referência e provavelmente as suas boas políticas não serem seguidas, tenho que pensar que apenas a RTP, como televisão estatal, deveria ser obrigada a cumprir esses horários. Desde que a SIC e a TVI não recebam ajudas do estado não vejo razões para serem obrigadas a cumprir o que quer que seja. É chato, mas sempre me atira para livros, músicas e DVD's (além de me fazer sair de casa). Compreendo que há quem prefira ver televisão, é um direito, mas isso só significa que, mesmo com essas chatices de programação, ainda há quem prefira ver programas com horários ridiculamente errados e falseados a fazer outras coisas.

Filipe Moura disse...

«deveria ser obrigada a cumprir esses horários. Desde que a SIC e a TVI não recebam ajudas do estado não vejo razões para serem obrigadas a cumprir o que quer que seja.»

João, eu não posso estar mais em desacordo. Acho isto inacreditável. Então fazia-se uma lei para a pública e outra para a privada?
Tu se vais a um restaurante privado e pedires um bife, não queres que te dêem um bife? No fundo é a mesma coisa. Exigir que nos dêem aquilo que nos anunciam. E negá-lo revela quão baixo é o grau de exigência dos portugueses perante a sociedade.

JSA disse...

Quero, claro, mas por um bife eu pago. Se não mo derem estão a defraudar-me. Não é o caso da televisão. Estão na mesma a defraudar-me, mas eu não estou a gastar dinheiro nisso (enquanto contribuinte ou assinante). Já no caso de outros canais, como Sic Notícias, Radical ou Comédia (ou outras), já concordo contigo. Lamento, mas neste ponto não acho que os liberais estejam assim tão errados. Se eu não gostar de uma oferta (como não pago por ela não é um "serviço") posso sempre procurar outra. Do mesmo tipo ou de outro.

Filipe Moura disse...

Assim já percebo melhor o teu argumento, João. Mas lá por ser gratuito não deixa de ser um serviço prestado, pelo qual o Estado (que concessiona as estações) tem alguma responsabilidade. É falso que "se eu não gostar de uma oferta" (gratuita) "posso sempre procurar outra". O número de canais de sinal aberto é limitado. As concessões são atribuídas pelo Estado. Uma televisão não é uma empresa como outra qualquer, que tu possas abrir outra ao lado quando te apetecer. Tem obrigações e responsabilidades.