2006/11/05

Ir ao concerto desta vez como se fosse o último

Um artigo de João Miguel Tavares, excelente como sempre, que exprime exactamente como eu me sinto e que transcrevo aqui na íntegra. Tiro a limpo amanhã à noite no Coliseu de Lisboa.

Chico Buarque em Portugal, "para ver antes que acabe"

João Miguel Tavares

Há ideias que já fazem parte da mitologia buarquiana. Ideias como "Chico Buarque é um homem tímido" ou "Chico Buarque não gosta de estar em cima de um palco". Mas o músico que se vai apresentar em Portugal a partir de hoje, para uma série de nove concertos (ver caixa), é um homem diferente daquele que actuou pela última vez em Lisboa, há 13 anos. O Chico século XXI já se move à vontade entre jornalistas, desprende charme com a precisão de um relojoeiro e dos espectáculos ao vivo chega mesmo a dizer: "Já sinto um certo prazer."

Chico não vinha a Portugal (para cantar, bem entendido) desde o disco Paratodos (1993), já que a digressão que se seguiu ao álbum As Cidades (1998) só atravessou o Atlântico em DVD. Agora veio, e, pelo que se conclui diante da abundância de salas cheias, muitos milhares continuam à sua espera. Aliás, fizeram- -lhe essa pergunta na conferência de imprensa de quinta-feira, no 19.º andar de um hotel de luxo lisboeta, junto às Amoreiras : "Como explica esta enchente de concertos em Portugal?" Ele respondeu: "Acho que as pessoas pensam: 'É melhor ver antes que acabe.'" E depois disto soltou uma longa gargalhada, embora sem explicar se tanto riso se deveu a ter achado a ideia absurda ou, pelo contrário, absolutamente plausível. Eu voto plausível.

Por isso, se alguém procura um conselho, os bilhetes são caros mas valem o investimento. O que se vai poder ouvir é: todas as 12 canções do seu novo álbum, Carioca; um tema de abertura de concerto retirado do espólio da melhor música brasileira - Voltei para Cantar, de Lamartine Babo; um alinhamento de mais 16 canções compostas sobretudo nas décadas de 80 e 90; entremeado de uma ou outra pérola escondida e nunca apresentada ao vivo, como Mambembe, de 1972; e ainda espaço no encore para clássicos como Sem Compromisso, Deixe a Menina ou Quem te Viu, Quem te Vê; e a despedida de cena ao som de João e Maria, esse notável hino surrealista para criancinhas.

Se for como no Brasil vai ser assim, e tendo em conta o rigor - há quem lhe chame rigidez - de Chico em palco não deve haver grande lugar para improvisações. Aliás, os ecos menos simpáticos da imprensa brasileira a propósito do novo show do cantor criticam precisamente os arranjos conservadores - da responsabilidade do seu velho cúmplice Luiz Cláudio Ramos -, a ausência de uma nesga que seja de improvisação e as poucas falas de Chico em palco. Portanto, se alguém quiser fazer Carnaval, convém procurar outro brasileiro.

Mas as mesmas críticas também admitem que os concertos de Chico acabam sempre da mesma maneira: público de pé, chuva de palmas, plateia em delírio. É inevitável: a mitologia buarquiana supera as suas próprias limitações. Chico é Chico, independentemente de já ter assinado discos mais inspirados, de já ter composto canções mais perfeitas, de já ter sido mais livre e sonhador, de já ter tidos os olhos mais verdes e a pele menos enrugada. Chico é Chico. É melhor ver antes que acabe.

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