2006/08/16

O mistério de Ettore Majorana continua a intrigar

...ou a demonstração do pluralismo da secção de Ciência do Público. Artigo publicado no Público de 13 de Agosto.



Ettore Majorana, um influente físico teórico italiano, desapareceu aos 31 anos em circunstâncias nunca explicadas. Passaram esta semana 100 anos sobre o seu nascimento e a especulação em torno do que se terá passado aumentou. Terá ele encenado o seu sumiço? A questão é controversa.
Majorana foi aluno de doutoramento de Enrico Fermi, que em conjunto com Paul Dirac introduziu o conceito de fermião (daí o nome), o tipo de partículas que constituem a matéria ao nível mais elementar, englobando os quarks e os leptões (como o electrão), e que têm um comportamento quântico distinto dos bosões (partículas que constituem a radiação). Cada fermião tem uma antipartícula, com a mesma massa e cargas diferentes: por exemplo, o antielectrão é o positrão.
Majorana aprofundou o trabalho de Fermi e Dirac, verificando que em certas circunstâncias existe um tipo de fermiões (chamados justamente de Majorana) que são a sua própria antipartícula, Foi o primeiro a propor que os neutrinos poderiam ter massa, algo que só em 1998 foi confirmado experimentalmente. Para Fermi, Majorana era um génio só comparável a Newton ou Galileu.
A produção científica de Majorana é muito influente, mas foi curta, pois o cientista desapareceu numa viagem de barco entre Palermo e Nápoles. Embora o caso tenha sido investigado, o seu corpo nunca foi encontrado.
Tal facto permitiu toda uma série de especulações sobre se Majorana se teria suicidado, teria sido raptado ou simplesmente estaria ainda vivo com outra identidade. Houve mesmo quem dissesse que seria um sósia seu que estaria no barco. O físico Erasmo Recami publicou um livro onde investiga a possibilidade de mais tarde Majorana ter vivido na Argentina.
Recentemente, surgiram hipóteses mais abstrusas. Num artigo disponível em http://www.arxiv.org, o físico ucraniano Oleg Zaslavskii, da Universidade Karazin Kharkiv, propôs que esta ambiguidade à volta do seu destino poderia ser uma simulação concebida pelo próprio Majorana para demonstrar a sobreposição quântica, segundo a qual uma partícula pode existir simultaneamente em dois estados quânticos mutuamente exclusivos. A proposta não é credível e não pode ser levada à letra. Já foi desmontada em blogues de cientistas, como o de Andrew Jaffe, do Imperial College, ou o português My Guide to Your Galaxy.
Na base da proposta estão as mensagens que Majorana enviou antes de desaparecer a Antonio Carrelli, director do Instituto de Física da Universidade de Nápoles, onde trabalhava.
Carrelli recebeu um telegrama de Palermo em que Majorana lhe pede que ignore uma carta que lhe teria escrito antes. Na carta, Majorana anuncia para breve o seu "desaparecimento repentino". Segue-se ainda outra missiva, onde Majorana revela que "o mar o recusou" e, como tal, regressaria no dia seguinte, "junto com esta carta", embora renunciasse ao seu cargo. A carta chegou, mas Majorana nunca regressou a Nápoles.
Numa passagem Majorana diz esperar que "o telegrama e a carta tenham chegado juntos". Estaria Majorana, de carácter introspectivo e pouco sociável, de alguma forma afectado pela nova teoria da Mecânica Quântica?
No romance La Scomparsa di Majorana, de 1975, editado em português pela Rocco, o escritor Leonardo Sciascia, siciliano como Majorana, propõe que este decidira desaparecer por ter previsto a invenção da bomba atómica, e por recear que Mussolini e Hitler pudessem utilizar o seu trabalho com esse objectivo. Supõe que o cientista, profundamente católico, estaria retirado num mosteiro.
Esta perspectiva de Majorana como crente é reforçada num artigo na última edição da revista CERN Courier, no qual o físico Antonino Zichichi relata que, segundo o seu confessor, Monsenhor Riccieri, Majorana experimentara crises místicas, mas que a hipótese de suicídio no mar deveria ser excluída. O resto Riccieri não poderia revelar, por segredo de confissão. Cem anos depois do seu nascimento, o destino e as motivações de Majorana permanecem um mistério.


Nota: Foi-me pedido que escrevesse sobre o centenário de Majorana e o referido artigo de Oleg Zaslavskii, que apesar de não ter credibilidade foi noticiado no New Scientist. Não dei deliberadamente grande destaque ao referido artigo, e fiz questão de incluir as melhores refutações que encontrei. Uma delas foi no blogue português My Guide to Your Galaxy, escrito por um estudante de física ultraliberal e antiesquerdista primário, destaque frequente no Insurgente. Como não poderia deixar de ser - mas nesta altura não deixa de ser bastante irónico... - o autor deste blogue, Sérgio dos Santos, estudante do Instituto Superior Técnico, no mesmo curso que eu, já escreveu um artigo... na Dia D!
O meu artigo foi submetido à editora de Ciência na sexta feira e publicado no domingo, bem antes de toda esta polémica despoletar. É um pequeno exemplo, mas espero que demonstre ao João Miranda que as minhas palavras sobre "a ciência de qualidade não ter credo, ideologia ou nacionalidade" não são só meras palavras ou declaração de intenções. São para levar a sério. A ciência de qualidade, qualquer que seja a sua origem, tem lugar na secção de Ciência do Público e em qualquer coisa escrita por mim... Gostaria de poder dizer o mesmo (mas não posso) do Blasfémias, e muito menos do Insurgente...

20 comentários:

zazie disse...

Desculpa lá Filipe mas desta vez não percebi nada.

1- tu escreveste um artigo em que o principal argumento foi dado por um liberal. Portanto com autoria dessa pessoa.

2- Ele escreveu um artigo sobre ciência na revista do jornal.

3- tu também escreveste. Usando até o argumento dele.

4- onde é que está a crise?

Filipe Moura disse...

Justamente, Zazie - não há crise nenhuma! Agora pelo post do João Miranda poderia depreender-se que a secção de ciência do Público só dava voz a "anacletos". Ou estou errado?

Filipe Moura disse...

Já agora - o artigo dele para a Dia D não tinha nada a ver com este caso. O ele ter escrito para a Dia D não teria nada a ver com o assunto, não fosse estarmos no rescaldo desta polémica. Percebido?
Beijinhos, que ainda vou almoçar.

zazie disse...

Bem, pelo post do João Miranda para quem está de fora a única coisa que dá para entender é que tu serias um anacleto.

E que um anacleto é anti-científico.

A questão é outra. Não é fácil vender ideologia com Física mas é muito fácil fazê-lo com meia dúzia de patacoadas (como as que linkei no outro post).
E para isso, meu caro, os galões académicos tanto servem.

Em história também temos agora o Historiador do Regime. o tal Rui Ramos. Pode ter as mais elevadas qualificações e virem com esse argumento mas, a verdade, é que muito do que ele vende até uma pessoa com formação liceal é capaz de desmontar.

O argumento deles- em relação às tuas posições sobre economia desmontava-se em 2 tempos-
ou menos. num único_

tu não escreves sobre economia na revista do Público.

zazie disse...

ok, percebi.

Mas, se queres a minha opinião, para acertar nestas coisas só uma via-

pegarem-se nos textos e desmontar-se a nulidade.

Se a nulidade de alguns tem traço comum que nem diz respeito à suposta ciência em nome do qual é escrito- mostra-se isso. E mostra-se que é ideologia.

Ou manipulação ideológica.

isto é válido para economia como para História como para outras coisas, tanto mais fácil quando elas têm aplicação prática que resultem de medidas governamentais e políticas de poder.

Luís Aguiar-Conraria disse...

"Justamente, Zazie - não há crise nenhuma! Agora pelo post do João Miranda poderia depreender-se que a secção de ciência do Público só dava voz a "anacletos". Ou estou errado? "

Absolutamente errado. O que o Joao Miranda disse foi precisamente o contrario. O que o JMiranda disse foi que da mesma forma que a seccao de ciencia do Publico apenas dava destaque a' boa ciencia, tambem a dia D apenas dava destaque a' boa Economia (na opiniao do JMiranda, claro).

zazie disse...

o anti-anacleto e' precisamente um anacleto de sinal contrario.

totalmente certo! a questão é precisamente essa!~

ainda agora o José a levantou num post da GL onde mostrava isso mesmo. O FJV a criticar um suposto discurso de esquerda de forma de tal modo simplista que nem lhe apanhou as subtilezas e apenas mostrou que ele é que parece ser descendente dessas raízes.

É isso chapado, mp-s.

As linguagens reactivas só acentuam a traço grosso e por caricatura aquilo que pretendem negar.

Em vez de negar mostram o mesmo defeito neles próprios.

André Azevedo Alves disse...

Parece-me que alguém devia fazer um desenho a explicar o post do JM ao FM.

zazie disse...

então eu vou fazer o desenho.

O post do JM mandou esta boca básica:

quem defende uma economia comunista no mundo actual está para a ciência económica como um curandeiro ou homeopata a Ciência em geral.

É verdade. Num mundo capitalista qualquer teoria anti-capitalista não faz sentido.

O ex. dos preços taxados pelo Estado é engraçado. Funcionava assim no tempo das confrarias medievais. No tempo de uma economia que não era de mercado.

Simplesmente este argumento é também ele um argumento falacioso e anacleto.

Começa por catalogar o adversário numa confraria política que lhe impediria de criticar tudo o que estivesse fora dela.

O LA-C desmontou bem o argumento-

As várias posições e interpretações de uma economia capitalista não se reduzem aquela que não o é- o comunismo.

E aqui fica o desenho.

Só faltava acrescentar o que disse por lá. Um título daqueles " junk Science, associado a um cientista de teoria de cordas, a perguntar se v.s (os anacletos) não têm por lá mais curandeiros para o alargamento ideológico da revista sobre Ciência.


Eu não sei o que mais incomoda a cada um. Mas creio que é mais cretino comprometer-se o Mourismo" do Filipe que qualquer "anacletismo" de horas vagas

zazie disse...

correcção: "para a Ciência em geral"

Filipe Moura disse...

Obrigado pelos comentários.
Luís A-C: parece-me necessária alguma boa vontade para ler só isso no texto do João Miranda, mas eu não costumo ser bom com as ironias.
Luís Rainha: o Majorana shielding foi proposto pelo tio deste Majorana, que também era físico.
Zazie e MP-S: epá, deixem-me trabalhar, como diria o outro :).

JSA disse...

Não vi, no artigo do JM, grande polémica no sentido que a interpretaste. O grande problema é outro: é o de, para JM, a Economia ser uma ciência exacta. Para ele, tudo o que não demonstre as vantagens automáticas do liberalismo não é "boa ciência". No meio disto tudo parece querer englobar ciências como a física ou química e a economia. A diferença, claro está, é que as duas primeiras são imutáveis no tempo e a economia não. Mas isto o JM prefere ignorar.

Não creio, contudo, que a crítica fosse pelo caminho de existirem (ou não existirem, neste caso) pessoas de áreas políticas diferentes na redacção de Ciência do Público. Penso que ele apenas se referia à falta de gente a escrever sobre outros campos da ciência. Talvez ele também queira alguém a escrever sobre o ID.

Luís Aguiar-Conraria disse...

"A diferença, claro está, é que as duas primeiras são imutáveis no tempo"

???? Como e' que e' isto????

airesff disse...

Viva!


Já tinha lido esse artigo no Público. Quem é o autor?

Gostei muito e dei lá em casa a ler.

JSA disse...

Luís (Aguiar-Conraria): a questão é que a física e a química (as tais "duas primeiras") são áreas que descrevem fenómenos naturais, independentes da actividade humana. A economia não passa por tal crivo, uma vez que depende de vários aspectos humanos e sociais. Por isso mesmo digo que a física e a química são "imutáveis no tempo" (sob o ponto de vista de tempo humano, claro, não tempo cósmico) e a economia não o é, pois as medidas económicas que funcionariam numa altura da história humana não funcionarão necessariamente noutra (será até discutível se funcionarão em zonas geográficas diferentes, mas não sou economista e aí acho que é melhor calar-me).

Luís Aguiar-Conraria disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
Luís Aguiar-Conraria disse...

JSA: “a economia não o é, pois as medidas económicas que funcionariam numa altura da história humana não funcionarão necessariamente noutra (será até discutível se funcionarão em zonas geográficas diferentes...).”

Tal como a força necessária para lançar uma pedra a 10 metros de distância é diferente no planeta Terra ou na Lua. O facto de a mesma medida (neste caso a força com que se lança um calhau) levar a resultados diferentes em diferentes contextos (Terra e Lua) não implica que as leis que descrevem dado comportamento são diferentes.

Luís Aguiar-Conraria disse...

mp-s
Essa é a questão importante. Se o modelo económico for bom deverá ser aplicável tanto nos EUA como em Cuba. Um modelo que seja rejeitado pelos dados de um país, é um modelo que é rejeitado pelos dados e ponto final. (tal como se eu aparecesse com equações de gravidade que dessem os valores correctos para a Terra, mas errados em Lua, concluiríamos que as equações por mim descritas não eram suficientemente universais).
Da mesma forma que as equações da gravidade deverão prever forças diferentes para a Terra e para a Lua, também o mesmo modelo deve ser capaz que a mesma política económica deverá ter resultados diferentes nos EUA e em Cuba.

PS Concordo quase em absoluto com os teus comentários no Blasfémias.

Luís Aguiar-Conraria disse...

Post PS: Quero esclarecer um ponto. Eu não pretendo dizer que a Economia é uma ciência imutável. Pretendo dizer o oposto, que as ciências duras não são imutáveis. São também o resultado da construção humana, o que, obrigatoriamente, também lhes dá um carácter normativo (por exemplo o princípio da escolha da explicação mais simples, ou “bela”) e faz com que não seja imutável. Este argumento é válido independentemente de haver uma verdade última ou não, pelo que não é isso que está em questão (pelo menos da parte que me toca)

JSA disse...

Luís, quando eu digo que a Química e a Física são imutáveis (no espaço de tempo da existência humana, note), quero dizer que as leis que estas ciências estudam são imutáveis, não quero falar das teorias e leis das mesmas, as quais apenas o podem ser dentro de condições fronteira muitas vezes extremamente restritas.

A diferença em relação à economia é que esta é mutável por acção ou natureza humana. Ou seja, onde a natureza dos agentes económicos seja diferente (e aqui poderemos utilizar um caso extremo como uma putativa raça extraterrestre ou um caso mais simples como os países asiáticos, com valores diferentes dos nossos), a economia-ciência que descreva a economia-realidade poderá ser diferente para cada caso. O mesmo se pode dizer numa situação mais simples se compararmos a realidade dos períodos feudal e esclavagista (esclavagista à escala planetária) em que os contactos entre culturas eram reduzidos com o mundo actual, em que os trabalhadores são, em geral, pagos e as economias dos países estão intimamente ligadas entre si.

Compreendo que está a falar da economia enquanto descrição, não da economia enquanto políticas/medidas, mas ainda assim creio existirem algumas diferenças entre as ciências que eu vejo como exactas (física, química e biologia) e outras que não o serão tanto (economia, como caso mais flagrante).