2007/02/28

Carnaval na Mealhada - o Rei não ia nu


O Rei do Carnaval da Mealhada (considerado o mais brasileiro de Portugal) foi, pela primeira vez, um actor português, Ricardo Pereira. Que, mesmo assim, foi apresentado como participando na telenovela brasileira "Pé Na Jaca".
Se eu quisesse ter tirado esta fotografia, provavelmente não a teria conseguido. Mas a verdade é que a tirei. E, por acaso, nessa altura o "rei" parece estar mesmo a puxar a roupa para cima. Roupa que, pelos vistos, lhe estava grande...

Carnaval na Mealhada - Tropicália


Ele organiza o movimento, ele orienta o Carnaval. Só não consta (por enquanto) que inaugure o monumento no Planalto Central. No comando da bateria da Mangueira, o Sandro.

Carnaval na Mealhada - a realeza dos bambas que quis se mostrar


Chegou a capital do samba
Dando boa noite com alegria
Viemos lhe apresentar o que a Mangueira tem
Mocidade, samba e harmonia
Nossas baianas com seus colares e guias
Até parece que eu estou na Bahia
Até parece que eu estou na Bahia

(Capital do Samba, José Ramos)

As baianas mais formosas também eram as da Mangueira.

2007/02/27

Carnaval na Mealhada - o desfile


Quem nunca tinha assistido, como é o meu caso, provavelmente não estava à espera, mas esta é uma festa de todas as idades. O empenho dos menos novos é notável.

Bella Italia - onde a esquerda é sinistra

A recente minicrise italana teve duas consequências (ao nível da blogosfera de esquerda portuguesa) que eu não esperava: fez-me concordar genericamente com o Daniel Oliveira (registo com agrado a sua evolução face a tomadas de posição anteriores sobre o mesmo assunto). E discordar frontalmente do Nuno Ramos de Almeida, que tão gentilmente me acolhe às sextas no Cinco Dias.
Telegraficamente, o que diz então o Nuno? Concorda: "é fundamental impedir o acesso ao governo à direita de Berlusconi, mas para isso não é necessário ir para o governo, bastava um acordo de incidência parlamentar." Tem graça que neste caso o que falhou mesmo foi o referido "acordo de incidência parlamentar". A crise foi gerada no Senado; não teve origem no governo. E "ir para o governo, ganhando alguns lugares, em troca de abdicar do programa" não é necessariamente uma afirmação de coragem, mas também não é de oportunismo. É uma afirmação de responsabilidade: de preferir trabalhar, implementar medidas concretas e fazer o melhor que se for possível, não se limitando à posição confortável (e sem responsabilidades) da crítica no café, nas colunas de jornal ou no blogue.

2007/02/26

Parabéns, Mr. Gore!

Imagem Mónica Almeida/NYT

Conseguiu o que nenhum outro Presidente ou Vice Presidente americano (nem mesmo Ronald Reagan) alguma vez tinham conseguido.
Do discurso de aceitação:
"Esta não é uma questão política, é uma questão moral. Temos tudo para começar, exceptuando talvez a vontade de actuar. E isso é uma energia renovável."

Parabéns, Mr. Scorsese!

Imagem Mónica Almeida/NYT

Já não era sem tempo.

2007/02/23

O português mais português que eu conheci


(Imagem roubada daqui; foi a única que encontrei.)

No passado verão, encontrava-me eu no Público a estagiar como jornalista científico. Atrás de mim sentavam-se os designers, que se encarregavam dos suplementos semanais. Sempre que alguém desta equipa de simpáticos profissionais estava de volta da próxima edição do Inimigo Público, aparecia um indivíduo mais velho, de trajo mais formal, gel na cabeça e mãos nos bolsos.
O ambiente na redacção de um jornal não é propriamente o mais calmo: há sempre conversas entre jornalistas, de trabalho ou não, que constituem um ruído de fundo geralmente alegre e não incomodativo. Acabamos por nos habituar e conseguir trabalhar. Mas cada vez que o dito senhor aparecia, tínhamos de ouvir a sua conversa com os designers, as piadas que ele lhes contava, e que terminavam sempre com as suas gargalhadas, altíssimas e algo alarves, que se ouviam naquele andar todo. O senhor pelos vistos achava muita graça a si próprio.
Um dia eu finalmente não aguentei mais. Dirigi-me ao senhor e pedi-lhe que falasse mais baixo, pois estava a incomodar-me e não me deixava trabalhar. Embora não deva ter sido propriamente simpático, pois encontrava-me (julgo que) compreensivelmente agastado, garanto que falei sempre com bons modos. Mas tal não foi suficiente para o senhor, que (numa reacção que nunca esquecerei) me mirou de alto a baixo e perguntou: “Quem é você?” Para de seguida me acusar de o “mandar calar” (algo que nunca fiz).
Compreendo que o senhor se manifestasse surpreso por ver um estagiário dirigir-se-lhe desta forma: os estagiários estão na base da hierarquia do jornal, à procura de uma vaga no quadro. Está certo que eu não era um estagiário como os outros (nomeadamente não pensava seguir a carreira de jornalista). Mas dirigi-me a ele, sem saber quem ele era, como me teria dirigido a qualquer outra pessoa (sempre com bons modos): por estar convencido da minha razão. Nunca vislumbrei no senhor qualquer pedido de desculpas ou sinal de arrependimento. Mas pela forma como me questionou, é legítimo pensar que, se me conhecesse, nomeadamente se eu me chamasse Belmiro ou Zé Manel, a sua reacção teria sido outra. Quando alguém chama a atenção a este senhor, pelos vistos é mais importante a posição da pessoa do que a razão que eventualmente possa ter.
O episódio passou-se, e entretanto o meu estágio no Público acabou. Não fazia na altura ideia de quem era o indivíduo com quem tinha protagonizado este episódio. Vim mais tarde a descobrir tratar-se do director do suplemento Inimigo Público. E só ainda mais tarde descobri o seu nome, e que era membro permanente do painel de comentadores do programa O Eixo do Mal, estando na origem da recente iniciativa para a escolha do “pior português”. Não o vou classificar como “bom” ou “mau”, pois todos temos virtudes e defeitos. Mas pelo comportamento que evidencia no que aqui relatei sobre o barulho na redacção (sobranceiro para com os estagiários, subserviente para com os poderosos) e pela tendência para a maledicência no que diz respeito aos seus compatriotas e semelhantes, considero que, de todos os portugueses que eu conheci, Luís Pedro Nunes, ele sim, neste pequeno episódio, representou o pior de ser português.

Publicado originalmente no Cinco Dias.

2007/02/22

Quando as letras não pagam as expectativas

No Diário de Notícias de domingo, é-nos apresentada uma série de licenciados no desemprego ou que vivem de biscates. Entre eles inclui-se uma antiga colega de blogue minha.
Olhando para o perfil dos licenciados em questão, vê-se que todos eles têm algo em comum. O quê? Não o terem estudado numa universidade privada: a maioria dos seleccionados até estudou no sector público. (Embora o desemprego de licenciados afecte sobretudo alunos de universidades privadas que apostam em cursos baratos – para a universidade -, de “papel e lápis”, sem qualquer preparação técnica, só para “garantir o canudo” ao cliente – o aluno.) O ISCTE, por exemplo, “contribui” com dois alunos, não ficando nada bem visto (o que, comparado com outras universidades, acaba por ser injusto). Mas qual é o problema? O que têm todos em comum? Muito simples: são “de letras” no secundário. Não estudaram matemática a partir do 10º ano. E agora deu nisto que se vê. É essa a característica básica do desempregado licenciado. Anos e anos de tolerância com o desinteresse e as más notas pela matemática deram nisto.
Mais do que um “Plano Nacional de Leitura”, do que Portugal precisa urgentemente é de um “Plano Nacional de Matemática”. Que poderia começar pela obrigatoriedade da frequência desta disciplina até ao 12º ano, qualquer que fosse o “agrupamento” de opção escolhido.

E tudo se acabou na quarta feira

De volta, depois da folia bairradina. A reportagem fotográfica segue dentro de momentos.
Aqui por estas bandas tudo começou numa Quarta Feira de Cinzas. Há quase um ano.

2007/02/20

A música dele, sim, é de levantar poeira

Por estes dias, aqui por este rectângulo, a Capital do Samba é a Mealhada, onde me desloquei, mascarado de judeu ortodoxo, para assistir ao vivo à versão local da Mangueira, cuja bateria é comandada nem mais nem menos do que pelo Sandro. Bom Carnaval para todos.

2007/02/18

A minha música não é de levantar poeira


Uma das coisas que eu faço, quando se aproxima o Carnaval, é ouvir intensivamente o Chico Buarque. Quem me lê pode julgar que eu não ouço outra coisa, mesmo durante o resto do ano, mas tal não é verdade. Só mesmo no Carnaval.
O último CD do Chico Buarque é bastante atípico, e uma das razões é só haver uma vaga referência ao Carnaval (logo na melhor música, Dura na Queda) não incluir nenhuma canção dedicada à escola de samba Mangueira, como era tradição nos últimos discos. Paratodos incluía Piano na Mangueira; Uma Palavra, a excelente Estação Derradeira; As Cidades, Chão de Esmeraldas e Chico ao Vivo, para além desta última ainda tinha Capital do Samba. Fico pelas clássicas, que seja. À guisa de homenagem a Tom Jobim, no ano em que completaria 80 anos, deixo-vos com Piano na Mangueira.

2007/02/16

A esquerda "carnívora" e a esquerda "vegetariana"

Graças ao António Amaral cheguei a um interessante artigo de Mário Vargas Llosa que, em Portugal, só se deve ler para a semana, sobre a esquerda latino-americana. É interessante a distinção que é feita entre a esquerda "vegetariana" (Lula, Bachelet, Garcia) e a esquerda "carnívora" (Castro, Chávez, Moralez). É a primeira vez que me identifico mais com os "vegetarianos" - logo eu, que tenho a fama (e o proveito) de ser um carnívoro (e peixívoro) impenitente. Em nome da ecologia, praticamente deixei de consumir caça e só como animais que foram criados para serem consumidos pelo homem. Mas o vegetarianismo é que não é para o meu metabolismo, e não creio ser muito bom para a saúde (pelo menos mental). Curiosamente, a maioria dos vegetarianos que eu conheço identifica-se muito mais do que eu com a esquerda "carnívora".

2007/02/15

Para acabar de vez com o tema do referendo - a blogosfera

Do lado dos vencedores esteve o blogue Sim no Referendo, um projecto plural como nunca se vira antes, tudo em nome de um objectivo comum. Conforme já foi referido encontraram-se lá protagonistas de diferendos anteriores que nunca se esperava que viessem a partilhar um blogue: Daniel Oliveira e Vasco Rato, Fernanda Câncio e Carlos Abreu Amorim, Rui Tavares e Helena Matos... Quem eu mais gostei de ver no mesmo texto – um escreveu e o outro publicou – foram Vítor Dias e Tiago Barbosa Ribeiro. Um interessante colunista e um excelente blóguer.
Eu não costumava ler o Blogue do Não, como aqui referi, mas pelo que vi quis-me parecer que nunca atingiu o mesmo patamar do Sim no Referendo. Nem mesmo com o reforço que constituia a presença do “português livre” Cláudio Téllez. Não o souberam aproveitar, é o que é. Para a posteridade fica este texto de encerramento, que eu traduzi para amigos meus de outras nacionalidades, para eles constatarem o tipo de pessoas e de argumentos com que andámos a esgrimir.

2007/02/14

O maior vencedor do fim de semana

Há muitos, mas o maior é José Sócrates. Toda a gente parece concordar com isso.
À direita há outros vencedores (Rui Rio e Paula Teixeira da Cruz), que reforçaram as suas posições enquanto esperam que Marques Mendes e Carmona Rodrigues acabem de se queimar.
O PCP e o Bloco de Esquerda não são “grandes vencedores”, tal como o CDS não é um “grande perdedor”.

O maior derrotado do fim de semana

Fala-se de José Ribeiro e Castro, mas fez o que pôde. Ninguém pode dizer que foi por culpa dele que o “não” perdeu.
Fala-se de Marques Mendes. Marques Mendes é um grande derrotado: disse adeus a todas as veleidades de alguma vez poder vir a ser um político respeitado. Revelou oportunismo e falta de coerência. Mas no fundo ninguém se surpreende verdadeiramente com isso, pois ninguém espera nada dele. No fundo, confirmou a sua falta de peso político.
A quem, pelo contrário, nunca faltou peso político (talvez por não ser visto como um político profissional, apesar de nunca ter feito outra coisa na vida) é o criador político de Marques Mendes. Marcelo Rebelo de Sousa, ele sim, é o maior derrotado político desta noite. Fez campanha pelo “não” de uma forma que mais ninguém dentro do PSD fez. Utilizou os recursos que mais nenhum político tem, em nenhum país do mundo: um programa semanal, no domingo à noite, e horário nobre, na televisão pública, sem nenhum tipo de contraditório. Fez campanha com esses recursos. E perdeu em toda a linha. Uma derrota mais forte do que qualquer outra nas escassas vezes em que se lançou a uma eleição.
Ninguém mais voltará a olhar para ele como “independente” e “descomprometido” (se é que alguém alguma vez olhou). Nunca mais terá a influência que teve. O facto político mais marcante do fim de semana é o fim de um mito chamado Marcelo Rebelo de Sousa.

2007/02/13

O sorriso de Cristas


Foi ela a escolhida para ser a representante do “Não” no debate-desforra “Prós e Contras” que a RTP decidiu fazer na semana passada.
Logo no começo do debate deu para ver qual era a sua postura, ao cumprimentar o “colega de faculdade” que via todos os dias (Rui Pereira, representante do “sim”) e todos os outros participantes no debate. Assunção Cristas estava ali para conquistar adeptos para o “não” com a sua (suposta) simpatia. O realizador do programa decidira colaborar; durante a noite, Assunção Cristas foi a interveniente mais focada, mesmo quando não estava a falar. Nos momentos mais polémicos do debate, nas picardias entre os outros participantes, a cara sorridente desta representante do “não” era sempre cirurgicamente focada e transmitia uma sensação de serenidade. Tínhamos aqui uma versão portuguesa do debate Kennedy/Nixon: quem eventualmente ouvisse o debate no rádio diria que o “sim”, apesar de tudo, ganhara; quem assistisse ao debate pela televisão teria de reconhecer a vitória do “não”, dada a focagem constante do rosto cúmplice e sorridente de Cristas.
Um participante no debate não se pode aperceber disto em directo, mas a principal missão a cumprir era interpelar Cristas. Enervá-la. Exasperá-la. Forçá-la a descer da tribuna onde se colocara, serenamente, a assistir aos outros a degladiarem-se. Sobretudo retirar-lhe, por um momento que fosse, aquele sorriso da cara. Não o conseguiram, e por isso o “não” ganhou. Aquele debate.
Eu nunca gostei de pessoas que estão sempre a sorrir. Julgo que estão a rir-se de toda a gente. E eu nunca gostei que se rissem de mim. Ninguém fica a rir-se de mim por muito tempo.
Foi pena, no domingo à noite, Assunção Cristas não ter aparecido na televisão (pelo menos que eu a tivesse visto). Gostaria de lhe ter visto a cara. Gostaria de ver se ainda tinha o seu sorriso. Mas não faz mal. O importante foi que desta vez não se ficou a rir.

2007/02/12

O momento mais espectacular do fim de semana


Mudando um pouco de assunto. De seguida voltamos ao referendo.

Os grandes derrotados do fim de semana (II)

O parcialismo e tendenciosismo na informação televisiva. Para além do que relatei aqui - e que gostaria que não passasse sem um esclarecimento -, a RTP durante a tarde de domingo anunciava a cobertura do referendo nas televisões estrangeiras. Como fundo, a CNN, que tinha aberto um fórum de discussão. O que dava na RTP era isto e não mais do que isto: um depoimento de uma espectadora da CNN, segundo a qual o "sim" não poderia ganhar, pois tal significava a "liberalização total do aborto" e era "contra a vida". Escolhido a dedo, hã? Em pleno dia da eleição.
Das televisões, salvou-se a TVI. Falem-me na influência da esquerda na comunicação social, que eu digo-vos.

Os números da vitória

Os números que interessa analisar estão no Esquerda Republicana.

O terramoto não foi só político

...também foi real, aqui em Lisboa. Grau 6 na escala de Ritcher.

Os grandes derrotados do fim de semana (I)


Para este, começou logo no sábado. Tudo lhe correu mal.

2007/02/09

Um grande peruano

Um portentoso artigo de Mário Vargas Llosa publicado em Dezembro de 2002 em diversos jornais mundiais, incluindo o Diário de Notícias, na coluna Pedra de Toque. Original em castelhano. Embora num contexto muito peruano, reúne o essencial do que há a dizer sobre a questão do aborto.

Cobardía e Hipocresía

EL cardenal Juan Luis Cipriani, arzobispo de Lima, habla a veces con una claridad tremante. En su homilía del 24 de noviembre, en la catedral de Lima, por ejemplo, llamó `cobardes e hipócritas' a los legisladores peruanos que, dos meses antes, habían considerado, en la revisión de la Constitución que se halla en marcha, exceptuar, dentro de la prohibición del aborto que consigna la carta constitucional, los casos en que el parto pondría en peligro la vida de la madre.

El Presidente de la Conferencia Episcopal del Perú, monseñor Luis Bambarén -quien, a diferencia de Cipriani, tiene unas sólidas credenciales de lucha en favor de los derechos humanos en la historia reciente del Perú- se apresuró a pedir excusas a los congresistas peruanos por el insulto, y, reiterando la oposición de la Iglesia católica al aborto, explicó que aquel exabrupto no comprometía a la Institución, sólo a su exaltado autor.

Juan Luis Cipriani no pasará a la historia por su vuelo intelectual, del que, a juzgar por sus sermones, está un tanto desprovisto, ni por su tacto, del que adolece por completo, sino por haber sido el primer religioso del Opus Dei en obtener el capelo cardenalicio, y por su complicidad con la dictadura de Montesinos y Fujimori, a la que apoyó de una manera que sonroja a buen número de católicos peruanos, que fueron sus víctimas y la combatieron. La frase que lo ha hecho famoso es haber proclamado, en aquellos tiempos siniestros en que la dictadura asesinaba, torturaba, hacía desaparecer a opositores y robaba como no se ha robado nunca en la historia del Perú, que `los derechos humanos son una cojudez' (palabrota peruana equivalente a la española `gilipollez'). Porque el cardenal Cipriani es un hombre que, cuando se exalta -lo que le ocurre con cierta frecuencia- no vacila en decir unas palabrotas que, curiosamente, en su boca tienen un retintín mucho más cómico que vulgar.

Nadie puede regatearle al arzobispo de Lima su derecho a condenar el aborto, desde luego. Éste es un tema delicado, que enciende los ánimos y provoca la beligerancia verbal -y a veces física- en los países donde se suscita, pero sería de desear que los prelados de la Iglesia que tienen posiciones tan rectilíneas y feroces sobre el tema del aborto, y no vacilan en llamar `asesinos', como él lo ha hecho, a quienes estamos en favor de su despenalización, mostraran una cierta coherencia ética en sus pronunciamientos sobre este asunto.

A quienes estamos a favor de la despenalización jamás se nos ocurriría proponer que el aborto fuera impuesto ni obligatorio, como lo fue en China Popular hasta hace algunos años, o en la India, por un breve período, cuando era Primera Ministra la señora Indira Gandhi. Por el contrario; exigimos que, como ocurre en Inglaterra, España, Francia, Suiza, Suecia y demás democracias avanzadas de Europa occidental, donde la interrupción de la maternidad está autorizada bajo ciertas condiciones, ésta sólo se pueda llevar a la práctica después de comprobar que la decisión de la madre al respecto es inequívoca, sólidamente fundada, y encuadrada dentro de los casos autorizados por la ley. A diferencia de esos fanáticos que en nombre de `la vida' incendian las clínicas donde se practican abortos, acosan y a veces asesinan a sus médicos y enfermeras, y quisieran movilizar a la fuerza pública para obligar a las madres a tener los hijos que no quieren o no pueden tener (aunque sean producto de una violación o en ello les vaya la vida), quienes defendemos la despenalización no queremos obligar a nadie a abortar: sólo pedimos que no se añada la persecución criminal a la tragedia que es siempre para una mujer verse obligada a dar ese paso tremendo y traumático que es interrumpir la gestación.

Desde luego que sería preferible que ninguna mujer tuviera que verse impelida a abortar. Para ello, por lo pronto es indispensable que haya una política avanzada de educación sexual entre los jóvenes y que el Estado y las instituciones de la sociedad civil suministren información y ayuda práctica para la planificación familiar, algo a lo que la Iglesia católica también se opone. Desde luego, la planificación familiar sólo puede consistir en facilitar una información sexual lo más amplia y objetiva posible, y una ayuda a quien la solicita, pero de ninguna manera en inducir, y mucho menos en imponer por la fuerza a las mujeres una determinada norma de conducta en torno a la gestación y el alumbramiento.

La dictadura de Fujimori y de Montesinos no lo entendió así. Estaba a favor de la `planificación familiar' y la puso en práctica, con una crueldad y salvajismo sólo comparables a las castraciones y esterilizaciones forzosas que llevaron a cabo los nazis contra los judíos, negros y gitanos en los campos de concentración. Los agentes de salud -enfermeras y médicos entre ellos- de la dictadura que asoló el Perú entre 1990 y 2000, se valían de estratagemas farsescas, en las campañas que llevaban a cabo en comunidades y aldeas campesinas, principalmente andinas, aunque también selváticas y costeñas, como convocar a las mujeres a vacunarse o a ser examinadas gratuitamente. En verdad, y sin que nunca se enteraran de ello, eran castradas. De este modo fueron esterilizadas más de 300 mil mujeres, según ha revelado una investigación parlamentaria. Fujimori seguía de cerca esta operación -en la que perecieron desangradas o por infecciones millares de campesinas- de la que le informaba semanalmente el Ministerio de Salud.

¿Dónde estaba el furibundo arzobispo de Lima mientras la dictadura de sus simpatías perpetraba, con alevosía y descaro, este crimen de lesa humanidad contra cientos de miles de mujeres humildes? ¿Por qué no salió entonces a defender `la vida' con las destempladas matonerías con que sale ahora a pedir a Dios `que no bendiga' a quienes perpetran abortos? ¿Por qué no ha dicho nada todavía contra esos cobardes e hipócritas funcionarios del fujimorato que perpetraron aquellos crímenes colectivos valiéndose del engaño más innoble para cometerlos?

Las organizaciones feministas le han recordado al arzobispo Cipriani que unos 350 mil abortos `clandestinos' se llevan a cabo anualmente en el Perú. Y pongo clandestinos entre comillas pues, en realidad, no lo son. La periodista Cecilia Valenzuela mostró, en su programa `Entre líneas', la misma noche de la homilía del cardenal, un espeluznante reportaje sobre el `aborto clandestino' en el que aparecían dantescas imágenes de fetos arrojados en las playas de Lima, y avisos publicitarios, en muchos periódicos locales, de comadronas y aborteros que ofrecían al público servicios de `raspados' y `amarre de trompas', sin el menor disimulo. Ésta es una realidad que el Estado no puede soslayar: cientos de miles de mujeres se ven obligadas a abortar y lo hacen en condiciones que reflejan la abismal disparidad social y económica de la sociedad peruana. En el Perú, como en la mayor parte de los países que penalizan el aborto, las mujeres de la clase media y alta abortan en clínicas y hospitales garantizados, y por mano de médicos diplomados. Las pobres -la inmensa mayoría-, en cambio, lo hacen en condiciones misérrimas en las que a menudo la madre se desangra y muere a causa de la falta de higiene y de infecciones. La despenalización del aborto no persigue estimular su práctica; sólo paliar y dar un mínimo de seguridad y cuidado a un quehacer desgraciadamente generalizado y cuyas víctimas principales son las mujeres de escasos recursos. No es inhumanidad y crueldad lo que lleva a innumerables madres a interrumpir el embarazo: es el espanto de traer al mundo niños que llevarán una vida de infierno debido a la miseria y la
marginación.

La Iglesia católica tiene todo el derecho de defender su rechazo del aborto y de pedir a los creyentes que no lo practiquen. Pero no tienen derecho alguno de prohibir a quienes no son católicos actuar de acuerdo a sus propios criterios y a su propia conciencia, en una sociedad donde, afortunadamente, el Estado es laico, y -por el momento, al menos-, democrático. La discusión sobre dónde y cuándo comienza la vida no es ni puede ser `científica'. Decidir si el embrión de pocas semanas es ya la vida, o si el nasciturus es sólo un proyecto de vida, no es algo que los médicos o los biólogos decidan en función de la ciencia. Eso es algo que deciden en función de su fe y sus convicciones, como nosotros, los legos. Con el mismo argumento que los partidarios de la penalización proclaman que el embrión es ya `la vida' podría sostenerse que ella existe todavía antes, en el espermatozoide y que, por lo tanto, el orgasmo de cualquier índole constituye un verdadero genocidio. Por eso, en las democracias, es decir en los países más civilizados del mundo, donde impera la ley y la libertad existe, y los derechos humanos se respetan y la violencia social se ha reducido más que en el resto del mundo, esa discusión ha cedido el paso a una tolerancia recíproca donde cada cual actúa en este campo de acuerdo a sus propias convicciones, sin imponérselas a los que no piensan igual, mediante la amenaza, la fuerza o el chantaje. Y en ellos se reconoce que la decisión de tener o no tener un hijo es un derecho soberano de la madre sobre la que nadie debe interferir, siempre y cuando aquella decisión la madre la adopte con plena conciencia y dentro de los plazos y condiciones que fija la ley. Si alguna vez el país en el que nací alcanza los niveles de civilización y democracia de Inglaterra, Suecia, Suiza y (ahora) España, para citar sólo los que conozco más de cerca, ésta será también la política que terminará por imponerse en el Perú. (Ya sé que falta mucho para eso y que yo no lo veré).

Una última apostilla. Cada vez que se le afea su conducta ciudadana y sus úcases políticos, el arzobispo de Lima blande la cruz y, envuelto en la púrpura, clama, epónimo: `¡No ataquen a la Iglesia de Cristo!' Nadie ataca a la Iglesia de Cristo. Yo, por lo menos, no lo hago. Aunque no soy católico, ni creyente, tengo buenos amigos católicos, y entre ellos, incluso, hasta algunos del Opus Dei. Tuve un gran respeto y admiración por el antiguo arzobispo de Lima, el cardenal Vargas Alzamora, que defendió los derechos humanos con gran coraje y serenidad en los tiempos de la dictadura, y que fue una verdadera guía espiritual para todos los peruanos, creyentes o no. Y lo tengo por monseñor Luis Bambarén, o por el padre Juan Julio Wicht, el jesuita que se negó a salir de la embajada del Japón y prefirió compartir la suerte de los secuestrados del Movimiento Revolucionario Túpac Amaru, y por el padre Gustavo Gutiérrez, de cuyo talento intelectual disfruto cada vez que lo leo, pese a mi agnosticismo. Ellos, y muchos otros como ellos entre los fieles peruanos, me parecen representar una corriente moderna y tolerante que cada vez toma más distancia con la tradición sectaria e intransigente de la Iglesia -la de Torquemada y las parrillas de la Inquisición- que el vetusto cardenal Juan Luis Cipriani se empeña en mantener viva contra viento y marea.

Outro grande português


Artigo de Miguel Sousa Tavares no Expresso de hoje.

Aborto, mentiras e vídeo

Domingo, vou responder à única coisa que me é perguntada: se acho que a justiça deva continuar a perseguir criminalmente quem faz aborto até às dez semanas de gravidez. Já me perguntaram isto em 98, já vi a mesma pergunta feita muito antes e em muitos outros lugares e a minha resposta continua igual à que dei a mim mesmo, a primeira vez que pensei no assunto: não, não acho que essas pessoas devam ser tratadas como criminosas. Verifico que há quem, entretanto, tenha mudado de opinião, num sentido ou no outro. Respeito essa mudança, só me custa a compreender é que se possa passar directamente de militante de um dos lados para militante do outro, como fez Zita Seabra. Há uma diferença entre virada e cambalhota.

Na mesma Faculdade onde ensina Marcelo Rebelo de Sousa, ensinaram-me dois princípios fundamentais em matéria criminal: um, que só pode ser considerado crime aquilo que a consciência social colectiva reconhece como tal; e, dois, que não há crime sem pena. Do primeiro princípio, resulta que um Código Penal não pode ser cativado por uma maioria, circunstancial ou não, que, sem um largo e pacífico consenso, define em cada momento o que é e não é crime. Conheço algumas mulheres e homens que, em dado momento das suas vidas, recorreram ao aborto. Foi uma decisão pessoal e íntima deles, que não me ocorreria julgar a não ser para dizer convictamente que não reconheço nenhum deles como criminoso. Não reconheço eu nem reconhece seguramente a maior parte das pessoas, incluindo muitos que vão votar ‘não’ à despenalização. Se assim é, porque insistem então em que a lei continue a tratar tais pessoas como criminosas?

Obviamente que a despenalização significa descriminalização. Os apoiantes do ‘sim’ têm medo da palavra e têm ainda mais medo da expressão que Aguiar Branco insiste em utilizar: aborto livre. Mas é exactamente disso que se trata: despenalizar significa descriminalizar e descriminalizar significa que o aborto passa a ser livre nas condições previstas na lei. Não percebo esta hipocrisia do campo do ‘sim’: o que se discute é precisamente isso, se há crime ou não há crime.

Mas, se há crime, há pena - como qualquer jurista não-malabarista sabe. Por isso é que se chama a este ramo do direito Direito Penal. A hipocrisia dos defensores do ‘não’ consiste na versão piedosa e absurda de que se poderia inventar para este ‘crime’ um tratamento especial: continuaria a ser crime, mas sem pena. Ou então, e ainda mais absurdo, haveria crime, processo, inquirições, mas o julgamento, esse, ficaria suspenso. Como se não percebessem o essencial: que o essencial é a humilhação. Marcelo Rebelo de Sousa produziu, a propósito, um fantástico número de contorcionismo jurídico para tentar justificar o injustificável. Teve azar: o ‘Gato Fedorento’ pegou nos seus argumentos e no seu tão publicitado vídeo no ‘You Tube’ e desfê-los à gargalhada, num dos mais inesquecíveis momentos de humor e sátira política de que me lembro.

Era preciso mudar de argumentação e, a meio caminho, os do ‘não’ passaram a defender que houvesse pena, mas não de prisão, para não impressionar as pessoas. Que pena, então? A melhor sugestão veio de Bagão Félix: trabalho comunitário, ou seja, trabalho forçado. Estão a imaginar uma mulher condenada por aborto a ter de se apresentar no trabalho que lhe tivesse sido destinado e a ter de explicar porque estava ali? Porque não antes a pena de exibição em local público?

Em 1998, a profunda estupidez e arrogância intelectual da campanha do ‘sim’ levou-me a votar em branco. Porque não voto apenas em ideias e projectos políticos, mas também nos métodos e protagonistas. Felizmente, desta vez, o ‘sim’ não repetiu nem as asneiras nem os piores protagonistas. Desapareceram as celebridades a gabarem-se de serem sim ou de já terem abortado, desapareceram as “especialistas de género” e as feministas a gritarem pelo “direito da mulher ao próprio corpo”. O ‘sim’, desta vez, deixou a presunção e o mau gosto para o campo do ‘não’ e isso foi um inestimável gesto de despoluição cívica.

Do lado oposto, como era de temer, saiu todo o arsenal de demagogia, mentiras e contradições disponíveis. Começou com o argumento financeiro, esgrimido por António Borges, verdadeiramente chocante do ponto de vista político, humano e até cristão. Continuou com a hipocrisia de defender a actual lei, depois de tudo terem feito para que ela não fosse aplicada, e acabou, claro, com o argumento da vida humana do feto, que se estaria a matar.

A questão da vida ou não vida do feto até às dez semanas, como se percebeu escutando os argumentos de ambos os lados, é muito mais filosófica e religiosa do que científica. Mas há duas questões conexas que eu gostaria de ter visto discutidas e não foram. A primeira é que com tanta veemência no “direito à vida” de um feto que se transformará num filho não desejado, não ocorra pensar no direito oposto: o direito de uma criança não vir ao mundo quando aquilo que a espera é uma vida indigna e miserável. 2006 foi, entre nós, um elucidativo exemplo de casos desses: filhos abusados sexualmente pelos pais ou padrastos à vista das mães, assassinados e escondidos em parte incerta ou mortos à pancada, sem que as instituições do Estado, a sociedade civil e os piedosos militantes do ‘não’ absoluto tenham demonstrado ter a solução que nos convença que não teria sido melhor nem sequer terem chegado a nascer. Não tenho dúvidas de que existem anualmente uns milhares de abortos que não deveriam ter sido feitos. Mas existem também, infelizmente, muito mais pais que nunca o deveriam ter sido.

A outra questão conexa que eu gostaria de ter visto explicada pelos defensores do ‘não’ é a da sua atitude perante o suposto crime, que a mim me parece totalmente hipócrita. Se eles acreditam verdadeiramente que um feto até às dez semanas é um ser humano que, pelo aborto, estará a ser morto, por que é que, em lugar de proporem penas suavíssimas ou até a isenção de pena para este ‘crime’, não propõem antes, e com toda a lógica, o seu agravamento? Como se chama o crime que consiste em tirar voluntariamente a vida a um ser humano? Homicídio, não é?

Sem dúvida que Portugal precisa de muito mais crianças, de maior taxa de natalidade. Mas isso não se consegue forçando o nascimento de crianças não desejadas, mas sim com crianças desejadas e condições para as desejar. Entretanto, temos outro problema para resolver que é o de saber como deveremos tratar as cerca de 40.000 mulheres que se estima que fazem abortos todos os anos. Temos a alternativa de continuar a deixá-las entregues a si próprias e, conforme o dinheiro que têm, optarem entre Badajoz ou a abortadeira de bairro. E temos a alternativa do Serviço Nacional de Saúde, com vigilância médica e acompanhamento psicológico. Eu defendo a segunda, da mesma forma que há muitos anos defendo que o Estado devia vender droga nos centros de saúde, sob vigilância médica e acompanhamento terapêutico e psicológico. Porque me impressiona uma sociedade que satisfaz a sua consciência chutando simplesmente os problemas para a clandestinidade e o Código Penal.

Um grande português


"Se todo o aborto é um mal, a clandestinização do aborto é uma catástrofe."

(Tese "O Aborto: causas e soluções", apresentada e defendida em 1940, quando o autor era prisioneiro.)

Alguns textos

Fiquei de apresentar aqui uma selecção de textos sobre a IVG que tenho lido. Felizmente, a quantidade de excelentes textos sobre o assunto tem sido tal, nos últimos dias, que uma lista desses textos, mesmo se não exaustiva, tornar-se-ia enorme. Mas remeto os leitores interessados para o Insónia, que teve a diligência de fazer uma colectânes desse género.
Sugiro o excelente blogue Sim no Referendo, onde um leque variadíssimo de autores, das mais diversas religiosidades, origens sociais e tendências políticas, defendem a despenalização do aborto até às dez semanas.
Dos blogues tradicionais, o que melhor se empenhou pela despenalização foi o Causa Nossa. Vital Moreira, com a sua participação no primeiro Prós e Contras e várias intervenções muitíssimo esclarecedoras (na sua qualidade de jurista), foi das figuras mais em destaque desta campanha.
Outro excelente blogue pela despenalização é o Logicamente, Sim, de um único autor, Tiago Mendes. Um verdadeiro tour de force. Neste blogue, para além de muitos e muito bons textos de sua autoria, entre os quais artigos no Diário Económico, o autor também compilou artigos de outros autores na imprensa. Com a sua licença, remeto os leitores para lá. Recomendo assim a leitura (entre outros) dos textos de Anselmo Borges, Frei Bento Domingues, José Vítor Malheiros e, sobretudo, Carla Machado.

O vídeo

A conhecidíssima sátira do Gato Fedorento, para o caso de alguém ainda não ter visto:

2007/02/08

“Páginas da Vida”: a SIC em campanha pelo “não”

Conforme é referido por Miguel Vale de Alneida, tem-se assistido esta semana a um espaço de propaganda gratuita do “não” no horário nobre da televisão de sinal aberto, que não vem identificada como tal. Não me refiro ao espaço semanal de Marcelo Rebelo de Sousa na RTP, onde este comentador promove o seu portal pelo “não”. Não me refiro ao Telejornal da RTP, que dedica seis minutos ao “sim” e treze ao “não”, oferecendo a Manuela Ferreira Leite e a Rosário Carneiro o direito de fazerem autênticos comícios. Nem sequer me refiro ao segundo “Prós e Contras”, um frete feito aos movimentos pelo “não” depois de no primeiro debate terem sido arrasados.
Refiro-me à telenovela brasileira da noite da SIC, Páginas da Vida, que esta semana tem tido o aborto como temática central. Nada mal, se o aborto não fosse apresentado de uma perspectiva claramente pelo “não” à sua despenalização na semana da campanha. Sobretudo, se nos dias anteriores não tivessem sido exibidos dois episódios de cada vez, tendo a telenovela inclusivé sido exibida nos últimos domingos (algo que não era habitual). Tudo para que o episódio a que se assistiu ontem pudesse ser exibido nesta semana. A exibição daquele episódio é tudo menos inocente. Não sucedeu por acaso.

Ficam aqui alguns vídeos do episódio transmitido anteontem para poderem fazer o vosso julgamento. Um momento chave é aos seis minutos do primeiro vídeo. Infelizmente a pior parte, transmitida ontem, não está disponível na rede: é o sermão do patriarca da família, Tide, interpretado pelo actor Tarcísio Meira (uma personagem apresentada na telenovela como imaculado e exemplar). Um sermão “pela vida acima de tudo”, e contra o “crime do aborto”. (Podem ver a sinopse aqui.)

Adenda: os vídeos relevantes estão todos aqui, mas só para clientes do SAPO.


2007/02/07

Despenalização, descriminalização e lógica simples

Basta um raciocínio de lógica elementar para se perceber que, dada a pergunta que vai ser referendada, as propostas de Rosário Carneiro, Laurinda Alves e Marcelo Rebelo de Sousa não têm cabimento. A dúvida que possa surgir resulta da confusão entre “penalização” e “criminalização”. Eu não tenho nenhuma formação jurídica, mas parece-me óbvio que tudo o que é penalizado pelo Estado tem antes de ser um crime. O oposto, no entanto, não é necessariamente verdade: há crimes que podem não ser penalizados. Na linguagem da Teoria de Conjuntos, as condutas penalizáveis são um subconjunto das condutas criminalizáveis. Da mesma maneira, e de acordo com a mesma teoria dos conjuntos, as condutas não criminalizáveis são um subconjunto das condutas não penalizáveis. O que acabei de escrever traduz-se, em linguagem comum, por “o Estado não pode penalizar o que não é crime”.
Pelo que expus, é bem diferente responder “sim” ou “não” consoante o que estiver em causa for a descriminalização ou a despenalização. Um “sim” à descriminalização implica um “sim” à despenalização. Um “não” à despenalização implica um “não” à descriminalização. Por isso, estando em causa a despenalização, e ao contrário do que geralmente é referido pela campanha do “não”, a resposta “sim” é mais abrangente do que a “não”. Se estivesse em causa a descriminalização, o “não” seria mais abrangente, mas é a despenalização que está em causa na pergunta do referendo que, recordo, foi aprovada pelo Parlamento e pelo Tribunal Constitucional e promulgada pelo Presidente da República. E o “sim à despenalização” é mais abrangente porquê? Porque é a única resposta que inclui a única solução de compromisso possível: a criminalização do aborto sem a sua penalização. É isto que em certas circunstâncias (não necessariamente sobre o aborto) já se fazia “na Roma antiga”, como lembrou no debate “Prós e Contras” a moderadora Fátima Campos Ferreira. É esta solução de compromisso que defende Marcelo Rebelo de Sousa. É este o conteúdo da proposta de lei de Rosário Carneiro. Reparem: sem penalização. Portanto, quando se pergunta sobre a despenalização a resposta só pode ser “sim”. É só isto que está em causa no referendo, e tudo o mais é uma mistificação que tem como objectivo confundir as pessoas. Se fossem coerentes, Rosário Carneiro e Marcelo Rebelo de Sousa só poderiam votar “sim” à despenalização. Mas não: Marcelo Rebelo de Sousa, Rosário Carneiro e os eleitores do “não” não querem a descriminalização e nem sequer a despenalização. Quem viu um advogado como António Pinto Leite, no programa “Prós e Contras”, a apelar (textualmente) à descriminalização do aborto, que defende ser amplamente consensual na sociedade portuguesa, mas a apelar ao mesmo tempo ao voto no “não” à despenalização, só pode concluir que estas propostas de aparente “moderação” por parte dos apoiantes do “não” constituem um enorme embuste.
Se os portugueses no próximo dia 11 votarem “não” à despenalização, estão a votar por manter a penalização (e, logo, a criminalização) do aborto. Nestas circunstâncias não é possível uma solução de compromisso. Pedir uma solução de compromisso e apelar ao voto no “não” à despenalização só tem um nome: hipocrisia. A única alteração que se poderia fazer na lei seria mudar o tipo de penalização (mas mantendo uma penalização): uma proposta do género da apresentada por Bagão Félix, que manteria sempre necessariamente o estigma da criminalização, do julgamento e da humilhação da mulher. Por isso, quando José Sócrates garante que não haverá alterações à lei no sentido da despenalização se o “não à despenalização” no referendo ganhar, não está a ser casmurro e nem a fazer birra: está a garantir que se cumpre aquilo que a maioria determinar. É da democracia. E é da Teoria dos Conjuntos.
É claro que poderão apontar-me que a pergunta do referendo não se refere só à despenalização do aborto, pura e simples: põe mais condições. (Se quiserem, na linguagem da Teoria de Conjuntos, as restrições impostas pela pergunta fazem com que as situações em que o aborto poderá ser despenalizado, em caso de vitória do “sim”, são um subconjunto de todas as situações em que o aborto poderia eventualmente ser despenalizado.) E ainda bem que põe mais condições: julgo que qualquer pessoa de bem é contra a despenalização pura e simples do aborto, se não for sob certas condições. Teoricamente é possível uma pessoa ser favorável à despenalização mas votar contra, por discordar de alguma das restrições impostas. Mas de qual restrição se poderia discordar? Das dez semanas? Mas quando haveria o aborto de ser permitido? Sem prazo? Ou com um prazo tão curto que não permitisse à mulher aperceber-se da gravidez? Também poderia discordar-se de o aborto ter de ser feito num estabelecimento legalmente autorizado, mas onde é que se iria autorizar então o aborto? Em casa? Noutro sítio qualquer, longe de pessoal qualificado e equipamento especializado, com risco para a saúde? Finalmente poderia discordar-se de o aborto ter de ser realizado por vontade da mulher, mas discordar disto implica necessariamente aceitar que o aborto possa ser realizado contra a vontade da mulher. É isto, e só isto, que significa discordar da condição “por vontade da mulher”. Mais uma vez é da Teoria dos Conjuntos.
Finalmente, poderia votar-se “não” não por discordar das restrições apresentadas, mas por achar que são poucas, por se querer mais restrições. Não será este o caso de Marcelo Rebelo de Sousa, que já acha a pergunta “muito complicada”. Mas poderia ter sido o caso da deputada Rosário Carneiro, que poderia ter posto as suas objecções à pergunta no local próprio, o Parlamento, e na altura exacta. Isto se estivesse realmente interessada na despenalização do aborto. Por só se ter lembrado da sua proposta na última semana da campanha, só pode concluir-se que não está interessada de facto na despenalização e só quer iludir os eleitores.
Não conheço e não concebo ninguém, em nenhum país do mundo, no seu perfeito juízo, que defenda a despenalização do aborto e discorde de restrições do género das que são impostas na pergunta do referendo. Por isso pode-se afirmar, e deve ficar claro, que quem vota “não” no referendo do próximo dia 11 é pela criminalização e pela penalização do aborto.

Também publicado no Sim no Referendo.

2007/02/06

Sobre o aborto

Só esta semana falei sobre o aborto, apesar de ser o tema do momento. E isto porque não creio ter nada a acrescentar a quem tem falado muito melhor do que eu faria, a defender a minha posição, o “sim”. O sim pela despenalização, mas não pela desresponsabilização. O sim pela prevenção. O sim pelo último recurso. Mas o sim convicto.
É claro que eu poderia dar-me ao trabalho de ler os argumentos pelo “não”, e então certamente passaria a ter muito por onde pegar. Era o que fazia o Luís M. Jorge, principalmente no seu anterior blogue. Eu elogio-lhe a paciência, mas confesso que não a tenho. Facilmente se entra em disputas nada construtivas entre gente que já está convencida, e não se ajuda a convencer ninguém. O problema é mais o de mobilizar as pessoas para irem votar, pois pouca gente não terá já a sua opinião formada sobre o assunto. Mas, para ajudar a convencer quem ainda precise de ser convencido, tenho lido muito bons depoimentos, especialmente (mas não exclusivamente) no excelente blogue "Sim no Referendo", especialmente criado pela despenalização, com participantes de muito variadas tendências políticas, o que eu saúdo. A eles acrescem outros textos, como este do Ricardo Alves. Vale a pena ler o texto do Ricardo, porque é dos poucos que li até hoje que desmontam o argumento de "se são dez semanas, por que não outro número de semanas qualquer"? Um terço da gravidez (treze semanas) tem um motivo.
Amanhã apresento uma selecção de textos.

2007/02/05

Votar sim, porque o aborto existe

É difícil discutir-se uma lei num país onde ninguém cumpre as leis. Mesmo que o referendo não seja sobre uma lei específica (o que seria inconstitucional), mais do que qualquer outro povo os portugueses apregoam uma moral e praticam outra. Toda a gente acha bem que haja limites de velocidade, e no entanto muitos condutores circulam em excesso de velocidade, pelo menos de vez em quando.
E é assim que a esmagadora maioria dos portugueses é favorável à despenalização do aborto, que, como já foi tantas vezes explicado, é só – e nada mais do que isso – o que está em votação no referendo. As previsões das sondagens, mesmo pondo o "sim" em vantagem, estão longe de reflectir tal opinião. Há uma percentagem muito significativa de portugueses favoráveis à despenalização, mas que reprovam a prática do aborto. Devem ser provavelmente estes os eleitores que ainda podem estar indecisos, e serão estes a decidir o resultado final do referendo.
É directamente a este segmento do eleitorado que Marcelo Rebelo de Sousa se tem dirigido. Marcelo conhece como pouca gente o povo português, é um bom comunicador e sabe fazer-se entender, mesmo quando quer manipular os seus espectadores. E tem apelado para que votem no "não".
Este tipo de eleitor é facilmente persuadido pelo "não", pelos motivos que comecei por referir. Particularmente num país onde tanto impera o "faz o que eu digo, não faças o que eu faço". Mas mesmo muitos eleitores cuja prática é conforme aos valores que defendem julgam que não haver uma lei que penalize o aborto equivale a aprová-lo. Só quetal não tem de ser verdade. Como foi bem explicado por Vital Moreira no último "Prós e Contras", o Código Penal não deve ser necessariamente um código moral. Mas é difícil convencer quem quer queseja desta distinção, dadas as questões morais envolvidas. Marcelo Rebelo de Sousa, mesmo com uma argumentação confusa e contraditória, bem tem tentado convencer o oposto, confundindo deliberadamente as duas coisas e iludindo os seus espectadores.
Para tentar convencer estes eleitores indecisos há que esclarecer este aspecto definitivamente. E há que demonstrar que o que se pretende é, como disse Bill Clinton (muito oportunamente citado por Paula Teixeira da Cruz, uma das grandes revelações desta campanha), tornar o aborto – até às dez semanas - "legal, mas seguro e raro". O essencial, o mais importante, e esta é a mensagem que é preciso passar, é que só se pode tornar o aborto seguro e raro legalizando-o. Quem quer combater o aborto tem de se convencer de que este não pode ser combatido pela lei. Por isso, votar no "não" para combater o aborto é inútil. Se se quer combater o aborto, não se pode fingir que ele não existe. Mas é isso que faz a campanha do "não", que fala do aborto como se ele só passasse a existir no dia em que fosse legalizado. Votar no "não", assim, só serve para manter as aparências. E manter tudo na mesma.

Publicado originalmente no Cinco Dias.

2007/02/03

Planos para o fim de semana

Se tiver tempo e paciência, ler o ensaio em cinco volumes do Ricardo Schiappa sobre o aborto (é raro o Ricardo escrever, mas quando escreve costuma valer a pena, só que saem assim uns lençóis de texto).
Escrever eu mesmo sobre o aborto. A ver se não sai como o do João Pedro Henriques.

2007/02/02

Desta vez fui eu

Lembro-me várias vezes de uma história que o Nuno me contou e que se passou entre o pai dele e Mário Soares, quando este ainda era Presidente e visitava a cidade de onde o Nuno vem. O pai do Nuno foi convidado para três cerimónias diferentes, em três locais distintos da cidade, de recepção ao Presidente. Nas três cerimónias houve a “sessão de apertos de mão”, que Soares distribuia a toda a gente que via. O pai do Nuno levou três, no mesmo dia, um por cerimónia. Das três vezes Soares perguntou-lhe “Como está?” antes de passar ao convidado seguinte.
Na terça feira foi a minha vez de levar um aperto de mão e um “Como está?”. Ainda estou a dois do pai do Nuno, e ainda tenho esperança de o igualar. Duvido é que sejam tantos no mesmo dia...

2007/02/01

A frase da entrevista

"Eu nunca trabalhei para ficar na História - eu trabalho sempre para o presente!"

(Mário Soares, no "É a Cultura, Estúpido!", 30 de Janeiro de 2007)

Apagão mundial

Entre as 18:55 e as 19:00 de hoje, hora portuguesa. Contra o desperdício de energia. As razões estão aqui.

“Como está?, Muito prazer..., Muito obrigado.”

Foi este o diálogo que tive com Mário Soares anteontem. Quando cheguei, à entrada do São Luís Maria Barroso dizia que o seu marido “deveria estar aí a chegar”. Deixei-me estar, ainda saí à rua para confirmar mais uma vez que a bicicleta tinha ficado bem estacionada. Um carro parou. Dele saíram Vítor Ramalho e Mário Soares. Eu estou à entrada. Olho para Mário Soares, que me pergunta “como está?” Apertamos as mãos. “Muito prazer em conhecê-lo.” “Muito obrigado.” E segue. Tanta coisa eu poderia ter-lhe dito. Fica para a próxima.