2011/06/18

Um ano depois

O primeiro texto que eu li de José Saramago:
Carta para Josefa, minha avó

Tens noventa anos. És velha, dolorida. Dizes-me que foste a mais bela rapariga do teu tempo – e eu acredito. Não sabes ler. Tens as mãos grossas e deformadas, os pés encortiçados. Carregaste à cabeça toneladas de restolho e lenha, albufeiras de água. Viste nascer o sol todos os dias. De todo o pão que amassaste se faria um banquete universal. Criaste pessoas e gado, meteste os bácoros na tua própria cama quando o frio ameaçava gelá-los. Contaste-me histórias de aparições e lobisomens, velhas questões de família, um crime de morte. Trave da tua casa, lume da tua lareira – sete vezes engravidaste, sete vezes deste à luz. Não sabes nada do mundo. Não entendes de política, nem de economia, nem de literatura, nem de filosofia, nem de religião. Herdaste umas centenas de palavras práticas, um vocabulário elementar. Com isto viveste e vais vivendo. És sensível às catástrofes e também aos casos de rua, aos casamentos de princesas e ao roubo dos coelhos da vizinha. Tens grandes ódios por motivos de que já perdeste a lembrança, grandes dedicações que assentam em coisa nenhuma. Vives. Para ti, a palavra Vietname é apenas um som bárbaro que não condiz com o teu círculo de légua e meia de raio. Da fome sabes alguma coisa: já viste uma bandeira negra içada na torre da igreja. (Contaste-me tu, ou terei sonhado que o contavas?) Transportas contigo o teu pequeno casulo de interesses. E, no entanto, tens os olhos claros e és alegre. O teu riso é como um foguete de cores. Como tu, não vi rir ninguém. Estou diante de ti, e não entendo. Sou da tua carne e do teu sangue, mas não entendo. Vieste a este mundo e não curaste de saber o que é o mundo. Chegas ao fim da vida, e o mundo ainda é, para ti, o que era quando nasceste: uma interrogação, um mistério inacessível, uma coisa que não faz parte da tua herança: quinhentas palavras, um quintal a que em cinco minutos se dá a volta, uma casa de telha-vã e chão de barro. Aperto a tua mão calosa, passo a minha mão pela tua face enrijada e pelos teus cabelos brancos, partidos pelo peso dos carregos – e continuo a não entender. Foste bela, dizes, e bem vejo que és inteligente. Por que foi então que te roubaram o mundo? Mas disto talvez entenda eu, e dir-te-ia o como, o porquê e o quando se soubesse escolher das minhas inumeráveis palavras as que tu pudesses compreender. Já não vale a pena. O mundo continuará sem ti – e sem mim. Não teremos dito um ao outro o que mais importava. Não teremos realmente? Eu não te terei dado, porque as minhas palavras não são as tuas, o mundo que te era devido. Fico com esta culpa de que me não acusas – e isso ainda é pior. Mas porquê, avó, porque te sentas tu na soleira da tua porta, aberta para a noite estrelada e imensa, para o céu de que nada sabes e por onde nunca viajarás, para o silêncio dos campos e das árvores assombradas, e dizes, com a tranquila serenidade dos teus noventa anos e o fogo da tua adolescência nunca perdida: “O mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de morrer!”. É isto que eu não entendo – mas a culpa não é tua.

José Saramago, in “Deste Mundo e do Outro"

2011/06/10

Dia de Portugal, de Camões, das comunidades e de João Gilberto

Ele pode viver completamente isolado num quarto de hotel onde ninguém está autorizado a entrar, e o camareiro deixa-lhe sandes â porta, sem a abrir nem tocar. Ele pode telefonar de madrugada aos amigos porque "precisa falar" (história que me foi confirmada por um). Ele pode ensaiar acordes de guitarra tantas vezes, de uma forma tão obsessiva, que o gato se suicida, atirando-se da janela, para não mais ouvir o mesmo acorde. Ele pode ser meio louco, mas aqulea forma de cantar como se nos estivesse a segredar ao ouvido é única. É um génio. E faz hoje 80 anos.

2011/06/07

Parabéns ao novo físico na política

Permitam-me endereçar os parabéns ao novo deputado Paulo Sá, eleito pela CDU no círculo de Faro. Se o Mariano Gago era um professor, o Paulo é quase um colega de curso: doutorou-se no mesmo departamento da mesma faculdade onde me licenciei. Se o Zé Mariano é um experimentalista, o Paulo é um teórico de altas energias. Entre outros temas a que certamente se irá dedicar, esperemos que seja uma voz da ciência no parlamento, ciência que, tradicionalmente, com a direita no poder, é muito mal tratada. Aproveito para recordar que, ao contrário do que foi diversas vezes repetido por diferentes comentadores na noite eleitoral, a CDU não beneficiou do alargamento do número de deputados do círculo de Faro para eleger o Paulo Sá, que nesta eleição seria eleito com o número de deputados antigo.

2011/06/06

Não compreendo

O texto que se segue reflete com certeza alguns preconceitos ideológicos. Posso ser parcial, mas não quero deixar de exprimir o meu ponto de vista.

Do que eu me posso recordar, o primeiro governo de maioria absoluta de Cavaco Silva empreendeu uma revisão constitucional que, entre outras coisas, permitiu abrir a economia portuguesa à iniciativa privada. A partir daí creio que se foi muito mais longe do que se deveria, tendo-se privatizado setores estratégicos de que o estado nunca deveria ter aberto mão. Mas reconheço que, provavelmente, naquela altura haveria um excesso de presença do mesmo Estado na economia. Embora lamente que se tenha ido tão longe, admito que alguma coisa teria que ser feita. Em particular na comunicação social: embora ache indispensável uma RTP pública, foi muito positivo aparecerem canais privados de televisão. No governo de Cavaco Silva também se construíram infraestruturas. O tão maldito Centro Cultural de Belém faz hoje parte do património de Lisboa, mas falemos de vias de comunicação. Uma vez mais foi-se muito mais longe do que se deveria, e hoje somos (relativamente) o país com mais autoestradas da Europa, muitas delas desertas a maior parte do tempo, cuja manutenção custa um dinheirão e que, provavelmente, nunca deveriam ter sido construídas. Mas até 1991 as duas principais cidades do país não estavam ligadas por autoestrada. Era evidente uma necessidade de melhoria de infraestruturas, e o primeiro governo de maioria de Cavaco Silva teve esse mérito. Finalmente, não sei precisar mas tenho ideia de que muitos idosos sem nenhum apoio ganharam uma pensão com este governo de Cavaco (ou viram-nas substancialmente aumentadas). Perdoem-me mas desconheço os pormenores. Mas tenho ideia de que há aqui mérito do governo.

Passámos de seguida para o último governo de Cavaco Silva. Não me recordo de nenhuma medida positiva deste governo que mereça entrar na história.

A título pessoal, e muito insatifeito com o resultado global

Votei bem – o meu voto elegeu um deputado -, e fiquei aliviado com isso.

2011/06/03

O meu voto

Não dou, de forma nenhuma, importância a Miguel Serras Pereira ou João Tunes para, afinal, não votar no Bloco de Esquerda só por causa deles. Também não dou essa importância ao meu amigo Ricardo Santos pois, apesar de lhe ter dito o contrário (e na altura em que lho disse não estava a fazer bluff), e apesar do seu (se calhar incorrigível) sectarismo (e de muitos outros militantes do PCP), vou votar na CDU nestas eleições. Tal justifica-se por votar em Braga, e as sondagens porem em risco a eleição de um deputado com valor, Agostinho Lopes, que, sendo muito próximo de Carlos Carvalhas, representa um setor não tão ortodoxo do PCP. Se votasse, por exemplo, em Coimbra, o sentido do meu voto seria de certeza outro (no Bloco de Esquerda). Se votasse em Lisboa, Porto ou Setúbal, talvez – friso o talvez – fosse outro. Em Braga achei esta solução de compromisso. Não espero muito deste meu voto. Espero que o PCP seja igual ao que sempre foi, e face ao governo que se adivinha eu quero oposição total (e nisso o PCP é bom). Por não esperar nada do PCP, não me apetece castigá-los tanto. Apetece-me castigar todos os partidos de esquerda: o PCP, pois claro, mas mais o Bloco. Pela sua indefinição ideológica, por num dia apoiar um candidato presidencial para no dia seguinte apresentar uma moção de censura: apetece-me castigar quem procede desta forma. Também me apetece castigar o PS, em quem votei nas últimas eleições, por me ter defraudado. E é isto. Muito negros tempos se adivinham; espero que, ao menos, nas próximas eleições legislativas, consiga votar com mais convicção.