2009/01/29

Pode-se viajar no tempo?


Conferência hoje no Instituto Franco-Português por Etienne Klein, investigador no meu bem conhecido Commissariat à l'Energie Atomique de Saclay.

2009/01/28

Ainda sobre o referendo em Viana

No Prós e Contras da semana passada, o lamentável apoiante do "sim" (creio que se chamava António Gonçalves, mas posso estar errado) teve esta frase lapidar em directo: a principal função de qualquer autarca é extrair o máximo que puder do Estado central! Quanto mais extrair (eu diria extorquir) melhor!
É também graças a frases como estas que a regionalização é rejeitada por permitir que surjam mais Albertos Joões Jardins!

2009/01/27

Proposta após o referendo de Viana

Após a vitória do "não" no referendo em Viana, importa concluir que os vienenses fizeram ao resto do Minho (não só o Alto - Braga incluída) o mesmo que muitos bracarenses (agora aborrecidos com este resultado) defendem que Braga deve fazer ao Porto, e que o Porto quer fazer a Lisboa: não deixar que outros mandem neles. Se a regionalização em Portugal fosse um processo natural, estas discussões não fariam sentido. Se ao nível local as populações não sabem a que comunidade querem pertencer, mais vale que permaneçamos todos sob a alçada do Estado (que não é a mesma coisa que "Lisboa") - a única forma de organização que em Portugal me parece natural e não forçada. Os municípios devem agrupar-se em áreas metropolitanas e comunidades, e é com base nestas que se deve fazer uma - imprescindível, que fique bem claro - descentralização.
A questão colocada pelo Presidente da Câmara de Viana é boa e creio que faz sentido: a representação dos municípios nestes agrupamentos deve ser proporcional à sua população. (De qualquer maneira, não me parece bom Viana ficar isolada, pelo que espero que a situação se resolva depressa.) Proporia que o órgão deliberativo destes agrupamentos fosse formado por todos os vereadores eleitos de todas as câmaras de todos os municípios. Uma vez que o número destes vereadores é proporcional à população, a ponderação seria a adequada.
Este passaria a ser, a meu ver, o papel a desempenhar pelos vereadores. Quanto às câmaras propriamente ditas, deveriam ter executivos monocolores, com as assembleias municipais a funcionarem como parlamentos.

2009/01/26

Na morte de Stella Piteira Santos

Recordo que o próprio Álvaro Cunhal reconheceu: se houve alguém com quem o PCP foi injusto, foi com ela e o seu marido Fernando.
A ler mais sobre esta mulher excepcional nos blogues As Causas da Júlia, Abrupto, Artesão Ocioso e As Brumas da Memória, bem como o obituário no Público e um resumo biográfico numa edição de há dez anos do Expresso, por ocasião dos 25 anos do 25 de Abril, que coloco aqui.

Uma mulher de coragem

Foi locutora na emissora da Frente Patriótica de Libertação Nacional, em Argel, e destacada militante antifascista. Aos 82 anos, Stella Piteira Santos, recorda alguns episódios mais marcantes da sua vida na luta contra a ditadura, pela liberdade

Stella Piteira Santos PARTICIPOU na fuga de Pável, ajudou prisioneiros dos campos de concentração, conduziu Humberto Delgado na noite de Beja, foi perseguida, presa e exilada. Falamos de Stella Bicker, também conhecida como Stella Fiadeiro e, em mais de metade da sua vida, Stella Piteira Santos. Os refugiados portugueses de Argel chamavam-lhe, simplesmente, «a mãe Stella». «Amigos, Companheiros e Camaradas. Fala a Voz da Liberdade, emissora da Frente Patriótica de Libertação Nacional.» A voz tremeu-lhe, engasgou-se, quando disse estas palavras de abertura das emissões radiofónicas dos exilados portugueses em Argel. «Ainda hoje me comovo quando digo isto» , conta Stella Piteira Santos, a primeira locutora da «Voz da Liberdade», agora com 82 anos, mergulhada em memórias que ilustram grande parte da história da luta pela democracia.
Até chegarem a Argel e porem «no ar», em finais de 63, uma rádio de opositores ao regime salazarista, Stella e o marido, Fernando Piteira Santos, tinham feito um longo percurso, que incluiu praticamente a separação do casal. «As emissões eram gravadas num velho estúdio da rádio oficial da Argélia, e montadas pelo sistema do metro e tesoura» , recorda Manuel Alegre, que se juntou à FPLN após a prisão em Angola, continuando o trabalho iniciado por Stella aos microfones. As emissões que «fizeram história» foram: o primeiro directo, aquando da doença de Salazar, e uma entrevista a Amílcar Cabral. Alegre recorda que, em todas as iniciativas da FPLN e no apoio aos exilados, Stella estava presente e activa. «A sua casa era uma referência para todos nós. Ela era o laço familiar que se refazia, era a 'mãe' que tínhamos deixado, era a 'avó' dos meus filhos. Era a ela que recorríamos sempre que tínhamos problemas. E no exílio os problemas são muitos, até de sobrevivência. A mãe Stella, que além do mais era uma grande cozinheira, muitas vezes matou a fome à malta.» Mas como é que uma filha da burguesia, educada em colégio de freiras, se torna uma revolucionária, perseguida pela polícia política, presa e finalmente exilada?
«Enquanto eu for vivo, não sai nenhuma procissão à rua» , assim falava José Bernardo, o patriarca da família Sousa Correia, lavrador algarvio de pendor republicano e profundamente anticlerical. O facto é que só depois da sua morte os padres se atreveram a fazer desfilar um andor. Mas, na casa rural onde se centrava a vida da família, reinava um espírito de grande abertura. E, quando chegou a vez das netas, Maria Manuela e Maria Stella, o avô ateu fechou os olhos à educação religiosa.
Do pai médico, e mais tarde também advogado, Stella guarda fortes lembranças, não só da infância e adolescência, mas pelo papel que viria a desempenhar ao longo da sua vida de oposição ao regime (ele morre em 72 e, estando a filha no exílio, Marcello Caetano autoriza-a a vir ao funeral).
«O meu pai foi uma das pessoas que participaram no 5 de Outubro de 1910. Dei, há pouco, a pistola 'Sauvage' de que ele se serviu na revolução.»E o seu pai chegou a disparar? «Ah, sim. Disparou mesmo!» Aos cinco anos, aprende a ler e escrever em alemão. Além duma «Fräulein», uma professora portuguesa dá lições às duas irmãs. As meninas fazem a primeira instrução em casa. Depois, a «Fräulein» partiu e, para não perderem o que já sabiam, foram para a Escola Alemã. «Passados três anos, a minha mãe opôs-se. Disse que éramos portuguesas, devíamos ter uma educação em português.»
Entretanto, Stella e a irmã são internadas no Colégio das Doroteias, em Sintra, onde tiveram uma educação muito convencional e de cariz religioso. Ali fez as normais amizades de adolescentes, mas a maior parte delas acaba quando casa, aos 17 anos, com Inácio Fiadeiro. «Nesse tempo havia o costume de raparigas e rapazes telefonarem uns aos outros. Assim começou o namoro.» Depois de muitos telefonemas, Stella e Inácio quiseram conhecer-se pessoalmente. Marcaram encontro no Cinema Central, que então funcionava na «baixa». «Como não saíamos sozinhas, disse-lhe que iria com o meu avô e a minha irmã, expliquei como estaria vestida, que camarote ocuparíamos, etc.»
Inácio Fiadeiro, com 21 anos, estudante de Direito, era já conhecido da Polícia de Vigilância e Defesa do Estado (PVDE, antecessora da PIDE) pela sua militância política. Companheiro de Álvaro Cunhal, que será convidado para a boda, Fiadeiro, mais tarde, terá o seu escritório de advocacia lado a lado com o do pai do amigo, Avelino Cunhal.
«Casámos com toda a pompa, na Igreja do Campo Grande. Quatro damas de honor, vestido branco de longa cauda, grande copo-d'água... Depois fomos numa viagem de barco à Madeira.»

Passeio no Tejo: (1.ª fila, a contar da esquerda): Stella, Pilar Baptista Ribeiro, Soeiro Pereira Gomes; (2.ª fila): Inácio Fiadeiro, Ramos da Costa, Rui Grácio, Alves Redol e Maria Virgínia Com o casamento, Stella Bicker passa a chamar-se Stella Fiadeiro e a sua vida entrecruza-se com a de muitos militantes comunistas, numa época em que, segundo nos diz, «o PC estava muitíssimo desorganizado». Havia reuniões na casa dos Fiadeiro e, com os amigos, davam passeios de fragata pelo Tejo, onde discutiam a guerra civil espanhola, a política castradora de Salazar e cantavam «A Internacional».
Ao casar com Inácio, Stella começa a fazer parte dessa «geração que sabia que era uma geração». Em Álvaro Cunhal, Uma Biografia Política (I Volume), José Pacheco Pereira faz o retrato sociológico desses jovens, vindos de organizações de estudantes, de intelectuais, todos unidos pelo antifascismo, onde avulta «a figura muito magra, com ar de iluminado» de Cunhal, que vai tornar-se «o condutor».
Nessa época, a intimidade do casal Fiadeiro com Cunhal é de tal ordem que, ao nascer-lhes o primeiro filho, em 1938, o convidam para padrinho. A criança irá chamar-se António, numa homenagem a Francisco Paula de Oliveira (Pável), figura lendária dos primórdios do PCP, que usava o pseudónimo «António Bugio», e se encontrava preso e doente.
Nesses anos quentes a polícia política está particularmente activa. São inúmeras as prisões, com torturas - nalguns casos até à morte - e deportações para os Açores e o Tarrafal. A grande maioria dos companheiros «mergulha». Na prática, isso consiste em passar à clandestinidade Ao ser preso no início de 1938, Pável tenta incendiar o prédio onde vive, na Rua da Beneficência, a fim de ganhar tempo e destruir papéis comprometedores. Mais tarde conseguirá fugir da enfermaria da cadeia do Aljube, onde fora internado por a polícia temer que ele lhes morresse às mãos. Conta com a inesperada ajuda de um enfermeiro, Augusto Rodrigues, que em jovem fora comunista e agora era informador da PVDE mas se dizia decepcionado com os métodos utilizados pelos esbirros de Salazar. O enfermeiro dispõe-se a ajudá-lo na fuga, com a condição de o acompanhar na viagem para a URSS.
No plano de fuga e saída de Portugal, Stella participa activamente, com o marido e outros antifascistas. É ela uma das pessoas que está no carro estacionado nas traseiras do Aljube, esperando que Pável surja de uma clarabóia e desça pelas paredes do prédio. A sua missão é levá-lo para uma das casas da família, na Estrada de Benfica, onde preparara um esconderijo. Não teve medo de ser descoberta e presa? «Curiosamente, nunca tive medo físico. Penso que, naquela altura, trabalhávamos com tal amor, púnhamos tanto de nós nas coisas que fazíamos, que o medo, se existia, não dávamos por ele.» Pável acaba por fugir por outras vias mas aparece-lhe em casa de madrugada. Precisa de ajuda médica, pois ferira-se na fuga. «Ele estava em tal estado que não se lembrava sequer do nome da mãe», lembra Stella. Entretanto, Pável tenta chegar à URSS - onde se formara na Escola Leninista e tinha uma família, mulher e filho, a aguardá-lo - sem nunca o conseguir. Bloqueado no caminho, frustrado por não poder cumprir a palavra que dera ao enfermeiro Augusto de o levar consigo para a União Soviética, Pável acaba por rumar ao México. É de lá que, 40 anos depois, em Novembro de 1988, envia um poema a Stella.
Na Europa, é de novo a guerra. Após a derrocada dos republicanos de Espanha, começam a chegar a Portugal refugiados, sobreviventes de massacres, guerrilheiros escapados a pelotões de fuzilamento e, pouco depois, judeus fugidos à crescente ameaça nazi. Um grupo de mulheres antifascistas cria a Associação Feminina Portuguesa para a Paz, cuja missão era receber e ajudar os refugiados. O facto de Stella falar alemão foi providencial para os contactos, feitos maioritariamente com judeus da Alemanha. Com o desenrolar da guerra, a actividade da associação centra-se na ajuda aos prisioneiros e aos fugitivos dos nazis. «Enviávamos encomendas com roupa e comida para os campos de concentração. Não sei se chegaram aos destinatários, mas só uma delas nos foi devolvida, através da Cruz Vermelha. Suponho que a pessoa tivesse morrido.»
Em Lisboa, a associação pagava pensões para alojar refugiados, com ajuda de quotas e apoios de particulares. As «mulheres pela paz» estavam sob a mira da polícia secreta porque a paz, como se sabe, é sempre suspeita. «Não sabíamos bem como aquela polícia funcionava. Nunca fomos presas. Mas algumas de nós eram perseguidas, seguiam-lhes os passos.» O facto é que a PIDE encerra a Associação, numa fase em que esta era liderada por Maria Helena Pulido Valente. Stella passa a outra política de ajuda, uma organização feminina para apoio às famílias dos presos políticos portugueses.
Entretanto, acaba a guerra e acaba o casamento com Inácio Fiadeiro, destino natural de muitas das uniões sentimentais daquela geração que andava a abrir caminhos para o futuro. «Foi uma separação perfeitamente amigável, mas depois estive 40 anos sem lhe falar.» Stella ficou com os dois filhos - entretanto nascera Maria Antónia, por coincidência afilhada de Fernando Piteira Santos, que viria a ser o seu padrasto - e pela primeira vez na vida decide procurar emprego, «para não estar completamente dependente da ajuda dos pais».
O domínio do alemão é-lhe particularmente útil. Arranja colocação numa empresa alemã (ao todo, trabalhará em três firmas alemãs, a última das quais a Siemens) e recomeça a vida. Dois anos mais tarde, em 1948, casa com Fernando Piteira Santos. «Ele saiu da prisão dois meses antes. Como eu ajudava os presos políticos, estivemos sempre em contacto. Mas o nosso casamento nada teve a ver com os nossos divórcios.»
A vida do novo casal, Stella e Fernando Piteira Santos, foi sempre marcada por separações. «Como ele foi expulso do PCP em 52, deixou de contar com o apoio da rede clandestina do partido. Quando andava fugido da polícia, o que aconteceu durante anos, nunca nos víamos.» Com o telefone sob escuta, os passos seguidos, Stella rodeava-se de precauções. «Ele às vezes telefonava e dizia, 'Estás boa?', e eu desligava logo». Ficavam a saber que estavam ambos vivos e em liberdade, mas mais nada. «Aqueles primeiros anos de casamento foram de angústia. Havia normas rígidas de segurança. Quando o Fernando não estava preso e desaparecia, eu só podia procurá-lo dois dias depois.»

Fotos de Stella no arquivo da PIDE Certa vez, a separação foi muito longa. A jornalista Gina de Freitas, no seu livro A Força Ignorada das Companheiras, dedica um capítulo a Stella, que conta: «Quando foi da intentona de Beja, em que o meu marido tomou parte activa, a PIDE foi a nossa casa, onde ele felizmente já não estava porque se tinha ausentado na véspera. Durante nove meses não tivemos o mínimo contacto, pois ele estava na clandestinidade. De vez em quando recebia uma ou outra palavra, mas nunca o vi nem falei com ele. Tanto que durante um certo tempo nem sequer sabia se ele estava cá ou se já tinha saído de Portugal.»
O papel de Stella não foi meramente de espectadora da intentona de Beja. O general Humberto Delgado, que viera do exílio em Marrocos para «tomar o poder», desencontrara-se com o seu enviado e mentor do golpe, Manuel Serra, e não conseguia contactar os seus apoiantes - talvez por ser fim de ano, 31 de Dezembro de 1961. Chovia torrencialmente nessa noite e a PIDE farejava qualquer coisa «no ar». As portas de Lisboa estavam cercadas pela polícia. Quando Delgado já desesperava, o casal Piteira Santos disponibilizou-se para ajudá-lo a chegar a Beja. O plano incluía algumas mudanças de automóvel, como medida de precaução. Na primeira fase, Stella conduziu o general, até Porto Alto. Aí, Delgado mudou-se para o carro de Adolfo Ayala, seguindo para Beja, onde a cidade já se encontrava em pé de guerra. Na sequência do golpe, a PIDE desencadeia forte repressão sobre os mais conhecidos antifascistas. Para não ser de novo preso, Piteira Santos desaparece na sombra. Na caça aos clandestinos, a polícia secreta recorria a ciladas. Com Stella, são utilizados vários ardis, a ver se ela estabelece o fio de ligação ao marido, a viver algures, na mesma cidade, com outro nome e outras referências.
No dia 15 de Fevereiro de 1962, mês e meio após o «mergulho» de Piteira Santos, o telefone toca às 7h30 na casa de Stella. No melhor estilo conspirativo, uma voz feminina sussurra: «Não diga nada, oiça só o que vou dizer. O seu marido acaba de ser preso.» Stella desliga, sem falar. Sabe que é típico da PIDE atacar àquela hora, «a hora do padeiro», em que as pessoas estão estremunhadas e pouco preparadas para reagir adequadamente. Muitos antifascistas são presos ao acordar. Alguns têm a arma debaixo do travesseiro e nem se lembram de disparar. O telefonema pode ser apenas uma provocação, mas Stella também admite que possa tratar-se de uma informação verdadeira. Há que proceder com precaução. Faz três telefonemas. «Um para Mário Soares, porque tinha um almoço combinado com ele para esse dia, e outros para Lyon de Castro e João Sá da Costa, ambos editores e companheiros da luta antifascista. Todos são incomodados pela PIDE».
Nenhum desses fios conduz ao esconderijo de Piteira Santos, e a PIDE passa directamente ao ataque. Pouco depois, ao sair de casa acompanhada da filha, então com 18 anos e aluna da Faculdade de Letras, Stella é abordada por um pide, Abílio Pires. Na esquina, está estacionado um carro suspeito, cheio de agentes. Pires, que já a conhece das visitas às cadeias, diz-lhe: «Sra. D. Stella, faça o favor de me acompanhar, só para uns pequenos esclarecimentos.» Sabendo o que significava a detenção pela polícia política, Stella trata de pôr a salvo uma carta do marido, que tinha recebido por «correio secreto» e guardara na carteira, dentro de uma agenda. «Naquele momento o mais importante para mim era não deixar a carta cair nas mãos da PIDE.»
A filha, Maria Antónia Fiadeiro - jornalista que se distinguiu na defesa dos direitos das mulheres, hoje assessora principal do Ministério da Cultura - completa o relato: «Eu já estava na paragem de autocarro quando percebi que a minha mãe tinha sido abordada. Voltei para trás e disse ao pide que a queria acompanhar. Ele disse: 'A menina não complique as coisas, a sua mãe vem a casa almoçar.'». Mãe e filha tentam ganhar tempo. Stella diz-lhe que é dia de receber a pensão da Dona Leonilde (mãe de Piteira Santos, que vivia com o casal) e fazer alguns pagamentos, e despeja a carteira, com a preciosa agenda, dentro do saco escolar da filha. O pide Abílio intervém: «Isso é que não, quero a sua agenda.» Stella mete a mão no saco da filha, agarra a agenda, sacode-a para deixar cair a carta no interior, e guarda-na na mala. A carta estava a salvo. Stella, não.
Maria Antónia lembra-se de que nesse dia «foi como se de repente tivesse ficado adulta». A jovem tinha pela frente um exame de História Clássica; a mãe fora levada pela PIDE e não podia falar do assunto aos colegas; o padrinho, que amava como um pai, vivia escondido e não podia ser encontrado; em casa, sempre à espera de notícias, estava a Dona Leonilde, «a minha avó afectiva, com quem vivi desde os quatro anos», e a quem a verdade, por ser dura de mais, nunca podia ser contada por inteiro.
«Lembro-me dela receber postais do filho enviados de vários países, quando afinal ele estava em Portugal. Houve sempre a preocupação de protegê-la.»

Em Chrèa, na Argélia, num piquenique de exilados Stella, levada para a António Maria Cardoso, fica quatro dias de «estátua» (de pé, sem dormir nem se poder mexer). «No primeiro dia, recusei-me a comer, lembrando que me tinham garantido que iria almoçar a casa. Dizia-lhes: estou detida ou não? Só quando me informaram que estava oficialmente detida, voltei a comer, porque a partir daí não sabia quanto tempo estaria nas mãos deles.»
Entretanto, Maria Antónia contacta Mário Soares, para o informar da prisão da mãe e saber se, de facto, o padrasto fora preso. «O Mário Soares olha para mim muito sério e diz que só há uma pessoa que pode saber disso. Então, tomando as maiores precauções, mudando de táxi várias vezes, fui ter com essa pessoa. Toco à porta e não conheço quem me atende. Disse-lhe: 'Venho ter com o meu padrinho.' No interior da casa, ele ouviu a minha voz e mandou-me entrar.»
A primeira precaução foi tirar Piteira Santos daquele esconderijo e colocá-lo noutro lugar seguro. Nos dias seguintes, Maria Antónia insiste muito com os inspectores da PIDE para que a deixem falar com a mãe, incomunicável. «Os meus argumentos deviam parecer-lhes um bocado ingénuos, dizia-lhes que era muito nova para tomar conta da casa e de uma avó de 89 anos, que havia muito que fazer e eu não sabia como, precisava de orientação da minha mãe, etc.» O facto é que a deixaram ver a mãe, entretanto transferida para Caxias. «Dei-lhe um beijo na orelha, enquanto sussurrava 'o Fernando não foi preso'. Esta informação descansou-a.»
Seguiram-se mais 48 dias de reclusão para Stella. «Em Caxias, metem-me na cela onde estavam as presas do Comité Central do PCP, a Alda Nogueira, a Sofia Ferreira e a Cândida Ventura. Como a Cândida tinha sido mulher do Fernando, pensaram se calhar que nos íamos pegar as duas. E não. Demo-nos lindamente. A Cândida, que estava presa há muito tempo, sem notícias do exterior, queria saber tudo. Eu lá lhe ia dando as informações que tinha. Falávamos tanto, ao ponto da Alda Nogueira nos mandar calar, farta de nos ouvir.» Quase dois meses depois, Stella é libertada sob fiança, paga pelo pai, e proibida de sair do país. Entretanto, um pide visitou a Siemens, advertindo o chefe de pessoal que não deveria receber a funcionária de volta. «Mas ele foi impecável e, quando saí da prisão, tinha o meu emprego.» Stella ainda hoje não sabe por que é que a libertaram. O pai e os amigos influentes tinham exercido as pressões possíveis, mas a hipótese que lhe parece mais fiável é esta: «A PIDE deve ter pensado que, comigo em liberdade, conseguiria localizar o meu marido.»
Quando, após o 25 de Abril, Stella leu os ficheiros da polícia secreta, ficou admirada por ter sido seguida durante tanto tempo, sem dar por isso. «Verificavam todos os meus passos. Nunca pensei que fosse objecto de tal vigilância. Mas, como estava treinada para não deixar pistas, levava a minha vida normal e eles, através de mim, nunca chegariam ao Fernando.»
Como o cerco apertava, começou a congeminar maneiras de sair do país. Uma casual ida a Ayamonte deu-lhe a primeira ideia. Pediram-lhe a «autorização do marido» para passar a fronteira (uma lei humilhante, em vigor até 1969, proibia a saída de mulheres casadas sem permissão do marido). Foi um alerta. «Aprendi a imitar a assinatura do Fernando. Levei muitas horas a treinar, sem dizer nada a ninguém. Quando achei que estava bem, pedi ao meu pai para a reconhecer no notário. O notário reconheceu-a.» De três em três meses, Stella imitava a assinatura do marido e o pai levava-a ao notário. Nunca houve problemas no reconhecimento. Só o pai levantou a lebre: «Então tu dizes que não sabes do paradeiro do teu marido e ele assina os papéis?» Stella guardava o seu segredo.
Entretanto, o filho António, que vivia em Londres, anuncia-lhe o casamento e deseja a sua presença. Stella pede um passaporte, que foi recusado. Faz uma exposição ao ministro do Interior, em termos veementes, de mãe que não pode perder uma data tão marcante na vida do filho, e aguarda. O ministro procura informações no consulado de Portugal em Londres, onde lhe confirmam a entrada da documentação para o casamento, e mandou emitir o passaporte. «A minha ida a Londres poderia ter sido a saída para o exílio, mas não foi...» Combinara com a filha que esta lhe enviaria postais em nome de Stella Piteira Santos, caso o marido ainda estivesse no país, e de Stella Correia Ribeiro, se ele já tivesse saído. A Londres, três semanas depois, os postais continuavam a chegar em nome de Stella Piteira Santos. «Então voltei a Portugal e voltei a ser funcionária da Siemens.» O facto de ter saído de Portugal, e voltado, teria dado certa confiança à PIDE, do género «ela foi e voltou, cumpriu a sua palavra». Mas o plano de fuga estava em marcha.

Stella e Fernando Piteira Santos num desfile das comemorações do 25 de Abril «Havia uma mulher que era, e ainda é, tida como antifascista - não digo o nome porque a senhora está viva mas, se ler isto, saberá que é a ela que me refiro - que de repente se fez muito minha amiga. Começou a enviar-me bolos para Caxias - onde me puseram de sobreaviso quanto a ela - e, no dia em que fui libertada, veio cumprimentar-me.» Esta «amizade» inclui alguns almoços em casa da senhora, um passeio a Sintra, a disponibilização de uma casa de campo «se Stella quisesse encontrar-se com o marido», e outros mimos.
Num dos almoços, Stella, por vários sinais de nervosismo da dona da casa, desconfia que há alguém à escuta. Ela fá-la levantar-se da cadeira onde estava e sentar-se noutra, de costas para o terraço; quando Stella tenta correr as cortinas da casa de banho, que davam directamente para esse espaço, a dona da casa fica muito aflita e impede-a de o fazer, com uma desculpa esfarrapada; finalmente, a provocação vai ao ponto de, muito alto, na cozinha que dava acesso ao exterior, perguntar-lhe directamente: «Então, quando é que vai ter com o seu marido?» Com a calma possível, Stella comenta: «Eu?! Ir ter com o meu marido? Então a senhora acha que, com uma filha de 18 anos, uma sogra idosa, e o meu ordenado a fazer falta para elas viverem, eu iria ter com o meu marido? Nem pense nisso!» Depois, Stella convida-a para almoçar em sua casa, daí a duas semanas. «Penso que isto a tranquilizou, quanto à minha possível fuga.»
A confirmar que a «antifascista» - o «camaleão», na gíria, ou elemento infiltrado - tinha ligações à PIDE, Stella conta que, no passeio a Sintra, e desconfiada de que a «amiga» queria localizar uma casa que os Piteira Santos tinham em Venda Seca, a levou lá. «Mostrei-lhe a casa, disse-lhe que ali passávamos fins-de-semana, etc. Claro que só lá estava o caseiro.» A senhora insiste: «Mas esta casa não tem número, a rua não tem nome, como é que se chega aqui?» Stella explicou-lhe: basta passar o fontanário, contar as ruas, virar em tal parte, e é o terceiro portão. Simplesmente, enganou-a. O portão não era o terceiro, mas o quarto. E, numa madrugada, os pides irrompem pela «terceiro portão», arrancam da cama duas velhotas espantadas, e viram tudo do avesso. Só depois se apercebem do engano. Stella obtém assim a confirmação de que a «amiga» é informadora da PIDE. «Denunciei-a a duas pessoas, que não acreditaram. Portanto, não voltei a mencionar o nome dela.»
Está em andamento o plano de fuga. «Quando a convidei para almoçar em minha casa, queria apenas dar-lhe confiança e ganhar tempo. Já tinha tudo preparado para sair. Fui levando cestos de fruta, que vinham da quinta do Algarve, para casa da minha mãe. Os cestos só levavam fruta por cima e, por baixo, as minhas coisas.»
Antes de tentar passar a fronteira, Stella deixou dois postais. Um, para a «amiga», pedindo-lhe desculpa por não a poder receber em casa no dia previsto, porque tinha ido a Londres tratar-se de uma doença grave (um atestado médico, passado por um amigo, confirmava-o); outro, para a Siemens, a avisar que se ausentaria por tempo indeterminado. «Como devia passar a fronteira no Sábado, dei os postais à minha filha, pedindo-lhe para só os pôr no correio na Segunda-feira.»
Stella finalmente dirige-se à fronteira do Caia, rumo ao exílio, em Setembro de 1962, num carro-caravana do casal Lyon de Castro. «Eles habitualmente iam para férias naquela altura, não levantando suspeitas.» Na fronteira, Lyon de Castro deixa as duas mulheres no carro e leva os três passaportes à polícia, incluindo a autorização de Piteira Santos para Stella sair do país. «Passou mais de meia hora. Eu cravei as unhas nas mãos até fazer sangue.» Como tudo parecia estar em ordem, deixaram-nos seguir.
«Lyon de Castro levou-me até à fronteira francesa, aí apanhei o comboio para Paris. Estive dois meses em França sem que o meu marido, que estava em Marrocos, soubesse. Eu não queria que ele soubesse, com receio de que me pedisse para voltar atrás, para não deixar a filha e a mãe sozinhas. Mas eu tinha decidido que queria viver com ele o resto da minha vida.»
Apoiada por outros exilados, a estada de Stella em França foi «mais bem guardada que muitos segredos de Estado». Piteira Santos, que todas as semanas telefonava para os camaradas de Paris, só soube que a mulher se encontrava lá quando desembarcou no aeroporto. Ficou zangado? «Um pouco. Foi difícil, a princípio, muito difícil...» Stella e Fernando estiveram em Paris alguns meses, durante a organização da Frente Patriótica de Libertação Nacional, e depois seguiram para Argel, onde lhes tinham sido oferecidas condições de permanência e continuação do trabalho político. «Ficámos até ao 25 de Abril.»
Manuel Alegre, que os acompanhou neste percurso, conta que uma das frustrações foi ter-lhes sido pedido para não entrarem em Portugal antes de 2 de Maio de 1974, para evitar confrontações com outras forças políticas durante a manifestação do Dia do Trabalhador. Maria Antónia Fiadeiro, que fora a Espanha buscá-los, com bilhetes de avião, regressa sozinha, e triste.
Stella, que viera de comboio, também só entra em Portugal no dia seguinte à manifestação. O casal Piteira Santos finalmente vive em liberdade no seu próprio país. Até 92, ano em que morre o marido, participam ambos em inúmeras actividades políticas. Depois, Stella continua sozinha o seu percurso. «Não recuso nenhum convite para falar do fascismo e do que ele fez aos portugueses.» Afinal, ela sabe bem do que está falando.
Texto de ÂNGELA CAIRES

2009/01/23

O João faz falta (2)

Só faltou ele dizer que é engenheiro aeroespacial... do Técnico! Para castigo, este texto leva a etiqueta "LEFT". No fundo o João deveria ter andado na LEFT.

Café com Blogues

se pode ouvir na rede o último programa onde eu, o Luís Aguiar Conraria e o Gabriel Silva falamos do Cristiano Ronaldo, do caso Esmeralda, das declarações de D. José Policarpo e do conflito israelo-palestiniano.

2009/01/22

O plano de estímulo de Obama deve incluir ciência

O meu guru (científico) David Gross é o co-autor deste artigo no Financial Times onde defende que o plano de estímulo à economia de Barack Obama deve necessariamente incluir um substancial aumento no financiamento público da ciência. À atenção dos governantes (e críticos) americanos... e europeus!
Cheguei a este texto através do Ars Physica, um blogue a que cheguei por acaso (através de uma pesquisa no Google) e que considero o melhor blogue de Física em português (pelo menos). É (muito bem) escrito por vários estudantes de doutoramento brasileiros (um deles no mesmo instituto onde eu me doutorei). Um blogue a seguir.

2009/01/21

Obamei!


Nunca dei demasiada atenção às campanhas eleitorais dos países onde vivi (exceptuando o referendo europeu em França em 2005). A razão (mesmo para esta excepção) é simples: só me diziam respeito muito indirectamente, por lá viver. Mas eu não votaria, pelo que a campanha não me afectaria. Acompanhava as campanhas somente pelo interesse de ver como se faz política nestes países, e não mais do que isso. Tinha colegas meus que viam discursos, liam livros e panfletos. Nunca me dei muito a esse trabalho.
Só ontem comecei realmente a prestar a atenção devida a Obama, ao ouvi-lo como presidente dos EUA. Agora, sim, o que ele diz diz-me (e muito) respeito. Pode ser uma descoberta tardia, quando comparado com outros blógueres, mas gostei. Fiquei rendido. Que a acção de Obama corresponda à sinceridade e à esperança que emana do seu discurso, é o que eu lhe desejo. Boa sorte, América!
Quanto ao concerto antes da tomada de posse, gostei de ouvir Bono, dos U2, a referir que "In The Name Of Love" é o desejo de israelitas... e palestinianos. Naquele país é preciso coragem para referir os palestinianos. Tivesse-os Bono omitido e ninguém acharia estranho.

Adenda: Leiam o André Abrantes Amaral, num texto com dois anos.

2009/01/20

América

Um americano comum

No rescaldo do discurso de despedida de George W. Bush, não faltou um comentador na SIC Notícias a reafirmar a "arrogância" do ex-presidente americano. "Arrogância" por não reconhecer os seus erros. Oito anos e não percebem nada. Bush não passa, nunca passou, de um americano médio. A atracção que exerceu nos momentos da eleição em grande parte do povo americano tem justamente a ver com isso. Um homem inculto como um americano médio, que faz asneiras e comete erros como um americano médio. E que nunca se dá por vencido... como um americano (médio ou não, isso não importa) não se dá. Para um americano médio, Bush pode ser estúpido mas não é um loser. É isso que conta.
Nunca vi nenhum tique de arrogância em George W. Bush. (As acusações de "arrogante", por parte do americano médio, caíam sempre sobre os rivais democratas, primeiro Gore e depois Kerry, que manifestamente não tinham paciência para aturar um rival daquele calibre intelectual.) Nem mesmo no seu momento de despedida. Bush é um homem genuíno. Genuinamente estúpido, mas genuíno. O comentador da SIC Notícias e todos os outros que achavam Bush arrogante deveriam convencer-se que, se calhar, acham é arrogantes os americanos todos.

2009/01/19

As discussões no Jugular

Refiro-me à troca de textos entre o Vasco Barreto, a Palmira Silva e o João Galamba. A discussão, sobre uma suposta "religiosidade recauchutada" associada à ciência, tem sido do melhor que se tem lido nestes dias. Destaco sobretudo os textos

e os respectivos comentários. Tomo a liberdade de transcrever aqui um, da autoria do conhecido comentador viana (como resposta ao João Galamba, de quem são as citações):



"Se por religiosos entendermos aquelas pessoas que acham que existe uma ordem natural das coisas — uma realidade objectiva, uma verdade que a que o homem se deve submeter — então a demanda 'existencial' da ciência não passa de religião recauchutada"

Há aqui uma grave incompreensão do que é e o que pretende a Ciência. Todos acreditamos. Constantemente. Em particular, que existe uma ordem ou causalidade inerente à realidade. Era impossível funcionarmos se não fosse assim. Acreditamos que o Sol vai nascer amanhã, que o chão não vai desaparecer debaixo dos meus pés quando der o próximo passo, que se não me desviar daquele carro que vem na minha direcção sou atropelado. O João acredita, espero, nisto tudo. Quer queria quer não acredita na existência de causalidade numa realidade ("objectiva", fisicamente percepcionada) que o circunda. Se reduzirmos a religiosidade a uma mera crença numa ordem natural, numa realidade "objectiva", na existência de explicações causais, então somos todos religiosos (inclusivé os cientistas, e não apenas porque acreditam na causalidade). Até os animais seriam religiosos (pois ajem como tal). Portanto, ser religioso não é apenas o que o João afirma. A diferença essencial, na minha opinião, é que alguém religioso acredita sem sustentação empírica. Poderia ser ainda mais restritivo: é religioso em particular quem age com base em crenças (sem sustentação empírica) relacionadas através dum sistema (segundo esta definição, por exemplo quem acredita numa entidade divina, mas nada faz como resultado dessa crença - ex não reza, e não tem qualquer outro tipo de crença associada - ex que há um profeta, não é religioso).

A Ciência, pelo contrário, pretende encontrar sustentação empírica para todas as "crenças" que constituem o "conhecimento científico." É uma diferença radical. Mas a razão de ser da Ciência e da Religião é a mesma: explicar a realidade. A sobreposição da Ciência e da Religião, quanto à motivação, é óbvia quando olhamos para as religiões mais primitivas, do tipo animista. Mas à medida que a explicação empírica da realidade foi ganhando consistência, a religião foi recuando cada vez mais. Com Copérnico, Newton, Darwin, Freud, Einstein...

"No fundo, pretende simplesmente encontrar algo que nos diga como o mundo é, aliviando-nos da responsabilidade de existir."

Nada na Ciência é desresponsabilizante. Pelo contrário, com informação, conhecimento, vem responsabilidade. Se nada sei, nada posso fazer com objectivo, e portanto posso ser completamente irresponsável. "Não sabia que a ponte que desenhei podia cair, portanto não sou responsável. Não sabia que expôr uma criança a filmes violentos era para ela traumático, por isso não sou responsável." Nada na Ciência induz à inacção, ou alivia. Copérnico, Darwin, Freud, Einstein, induziram e induzem muita angústia existencial. Não me parece assim que o conhecimento científico alivie de algo modo a responsabilidade de existir.

"Isto não pretende desvalorizar a biologia, mas apenas rejeitar a utilidade de um entendimento naturalistico do homem. Por outras palavras: defendo a irredutibilidade da cultura à natureza."

A discussão do "nurture vs. nature", que vem no esteio da ascensão da sociobiologia, é velha e estéril. A maior parte dos cientistas (biólogos, psicólogos, sociólogos) e filósofos envolvidos aceita hoje que quer a biologia quer a cultura participam na construção do que qualquer ser humano é. Rejeitar a influência da biologia na cultura contradiz o que é óbvio, e portanto de certo modo equivale a uma crença religiosa (experimente substituir "defendo a" por "creio na").

"Se quiseres, a pretensão da ciência em transformar-se em cientismo (em algo que desacredita a verdade da religião) é, por muito que o negue, uma nova forma de teologia."

A Ciência não tem essa pretensão, e apenas indirectamente desacredita a religião, pois não é esse o seu objectivo. O que acontece é que a Ciência progressivamente tem vindo a disponibilizar explicações alternativas às da religião, as quais "fazem mais sentido" para o ser humano comum (porque baseadas em constatações empíricas). E portanto este necessita cada vez menos da religião para compreender a realidade que o circunda.


Uma discussão imperdível. Parabéns aos seus intervenientes.

2009/01/16

Acabou o SEXTA

Confirma-se: a publicação do semanário gratuito SEXTA foi suspensa. De acordo com as informações oficiais, o semanário não resistiu à crise económica e ao desinvestimento no mercado publicitário. Quando surgiu era o melhor gratuito, algo a que ser também publicado como suplemento do PÚBLICO não seria alheio. Mas para o fim a quebra de qualidade era evidente (depois do verão deixou mesmo de ser distribuído com o PÚBLICO e A BOLA). Vou ter saudades do SEXTA original, um suplemento bem feito e informativo. Vou ter saudades de ler o João Palma, meu camarada na redacção do PÚBLICO durante o meu estágio como jornalista científico. Alguém pode dizer-me onde posso continuar a ler o João Palma?

Jovem português desaparecido

O Afonso Tiago desapareceu em Berlim, sexta-feira passada. A notícia já está nos jornais e nos blogues. Se alguém tiver quaisquer informações sobre o Afonso Tiago informe os autores deste blogue, expressamente criado para o efeito. Mesmo que não tenha informações, pode ajudar divulgando este pedido.

2009/01/15

"A guerra contra Gaza já estava na agenda"

Artigo de José Goulão no Le Monde Diplomatique

Para entender o que está a passar-se actualmente em Gaza é necessária muito mais informação do que a proporcionada pela chusma de comentadores instantâneos que invadem as rádios e televisões e pelos enviados ou residentes que, não conseguindo entrar na faixa invadida, se conformam em ser veículos bisonhos, acomodados e passivos da realidade fabricada no Estado-Maior israelita. Ao menos podiam dar conta de episódios das importantes manifestações internas israelitas contra a guerra, mas parece que isso poderia parecer uma perigosa dissonância. É natural concluir-se que, tal como a agressão militar tem vido a ser preparada há mais de seis meses, também a correspondente acção de propaganda foi montada durante o mesmo período.

A primeira vez que estive em Gaza foi em Fevereiro de 1988. A primeira Intifada começara pouco mais de dois meses antes precisamente naquele território ocupado, com uma dinâmica e persistência que surpreendeu a própria Resistência Nacional Palestiniana dirigida pela Organização de Libertação da Palestina (OLP).

Nessa altura o Hamas não era mais do que um grupinho fundamentalista inspirado nos Irmãos Muçulmanos, organização fundada no Egipto em 1928, que se dedicava a agitação religiosa e alguma assistência social. Em 1988, porém, o Hamas foi ganhando fôlego, pretendendo distinguir-se pela chama revolucionária, decretando greves gerais e acções de resistência próprias que nunca convergiam com as desencadeadas pelas direcções da Intifada e da OLP. O Hamas actuava, visivelmente, como uma organização divisionista, potencialmente perturbadora da mobilização popular.

Hoje, apesar de o pudor ou o desconhecimento impedirem comentadores e enviados ou residentes de se debruçarem sobre tal facto, já não é novidade que os serviços secretos israelitas, a Mossad, tiveram um papel determinante no relançamento e engrandecimento do Hamas. Tal foi reconhecido mesmo por ex-ministros israelitas e está profusamente demonstrado por informação disponível na Internet. Nem dá muito trabalho.

Essa foi a génese do Hamas que hoje conhecemos. Como atingiu as dimensões actuais? Sempre à sombra da guerra e do boicote aos processos de negociações conduzido pelos governos de Israel e as administrações norte-americanas - primeiro mediadoras do processo de Oslo e depois as cabeças de cartaz do falecido Quarteto (Estados Unidos, Rússia, União Europeia e Nações Unidas), que já nascera moribundo.

Quando se iniciou a Autonomia Palestiniana como processo transitório para um Estado independente e Yasser Arafat regressou à Palestina, no Verão de 1994, a voz do Hamas mal se ouvia. As populações palestinianas dos territórios estavam em festa e acreditavam no bom desfecho de todo o processo.

Shimon Peres, Benjamin Netanyahu, Ehud Barak, Ariel Sharon e Ehud Olmert, mais Bill Clinton e, sobretudo, George W. Bush foram inviabilizando paulatinamente as negociações israelo-palestinianas, assumissem as formas que assumissem, enquanto a Fatah (força dominante da OLP) e a Autoridade Palestiniana se foram enrodilhando na falta de alternativas estratégicas às negociações.

Essas foram assumidas pelo Hamas, que capitalizou gradualmente o descontentamento popular, mesmo de vastos sectores não religiosos ou religiosos não radicais, até se transformar na maior organização da Resistência e ganhar as eleições gerais palestinianas de 2006. O não reconhecimento do governo do Hamas pelos Estados Unidos, Israel e o mundo em geral - nem mesmo em aliança com a Fatah - poupou o movimento islâmico ao desgaste do exercício do poder e de ser forçado a actuar no terreno em vez de privilegiar a propaganda nas mesquitas e a mobilização paramilitar.

Quando a Fatah e o Hamas chegaram ao limiar da guerra civil, em 2007, o grupo islâmico assumiu o controlo de Gaza, enquanto Israel aproveitava a ocasião para impor um rigoroso bloqueio humano e de bens essenciais ao território. Em fase de plena construção do muro que fracciona a Cisjordânia em autênticos bantustões, a balcanização dos territórios palestinianos aprofundou-se.

A tomada de Gaza pelo Hamas terá surpreendido o mundo, mas não os dirigentes de Israel. Basta conhecer o Plano Dagan.

Meir Dagan é o chefe da Mossad, reconduzido por sucessivos governos israelitas desde o início do século. Ele idealizou uma estratégia de actuação que se tornou a cartilha de Ariel Sharon praticamente desde que este ressurgiu em força com a mediática invasão da Esplanada das Mesquitas em 2000, tolerada pelo então chefe do governo, Ehud Barak (o ministro que agora conduz a agressão a Gaza), e que inviabilizou a possibilidade iminente de palestinianos e israelitas se entenderem nas negociações de Taba, no Egipto.

Percorramos, em síntese, alguns passos previstos no Plano Dagan. A operação «Vingança Justificada» tinha como objectivo enfraquecer, tornar maleável ou mesmo destruir a Autoridade Palestiniana. Sahul Mofaz, enquanto ministro da Defesa, apresentou-a com o título «A destruição da Autoridade Palestiniana e o desarmamento de todas as forças armadas». Isso, contudo, não impediu Israel e os Estados Unidos de fornecerem armas à Fatah na fase em que incentivavam a guerra civil entre os dois principais movimentos palestinianos. Entretanto, Israel exige agora o desarmamento do Hamas como pressuposto para um cessar-fogo.

Outro ponto do Plano Dagan era o desaparecimento de cena de Yasser Arafat (um velho objectivo de Sharon desde a invasão do Líbano em 1980) e a sua substituição por uma direcção da Autoridade Palestiniana mais colaborante com Israel. Um objectivo como este mantém acesa a tese do assassínio do histórico dirigente palestiniano. A balcanização dos territórios palestinianos, o lançamento de vagas de terror contra as populações e o bloqueio de Gaza são outros aspectos do plano. Sem esquecer que, quando estava prestes a ser acordada a trégua de meados de 2008 em Gaza, Ehud Barak notificou as Forças Armadas para prepararem uma operação de grande envergadura contra este território para desencadear daí a alguns meses. Lendo o Plano Dagan não é de descartar que em alguma fase deste processo Israel abra uma «válvula de escape» em Gaza para que haja uma fuga em massa - limpeza étnica é a expressão correcta -, eventualmente para a Jordânia, atendendo ao comportamento actual do Egipto. Neste contexto é natural que venham à memória as conhecidas palavras de Ariel Sharon: «Não é necessário criar outro Estado palestiniano. A Jordânia é a Palestina».

2009/01/14

O senhor que se segue?

Depois do anúncio da retirada de Filipe Soares Franco, começa a interrogação sobre quem será candidato à sua sucessão. Um cenário de pesadelo seria um duelo Rogério Alves - Sérgio Abrantes Mendes, como era de prever e foi anunciado como rumor na comunicação social. Felizmente, tal ideia parece estar a ser afastada...

2009/01/13

30 anos depois, os Xutos ainda são os maiores

Aveiro


É o nome do melhor jogador do mundo.

2009/01/12

Não há «israelitas» nem «palestinianos»

Artigo de António Vilarigues no Público de 9 de Janeiro. Tomo a liberdade de o reproduzir aqui, pois considero que sumariza muito bem tudo o que está em questão no conflito israelo-palestiniano.

Em 1947, a ONU aprova um plano de partilha da Palestina em dois estados: um judaico, com um milhão de habitantes, 510 mil dos quais árabes; um árabe, com 814 mil habitantes, 10 mil dos quais judeus.

Jerusalém, cidade santa para três religiões, ficaria com estatuto de cidade internacional. Segundo as estimativas da época, a população árabe da Palestina era de um milhão e 300 mil pessoas e a judaica rondava o meio milhão.

A 15 de Maio de 1948, David Ben Gurion proclama o nascimento do Estado de Israel. Com uma fronteira radicalmente diferente da aprovada pela ONU. Com um território um terço superior ao acordado. A "Grande Israel" estava em marcha. O Estado Palestiniano era um nado-morto. Até hoje!

No seguimento destes acontecimentos, a ONU aprova, em 1949, a Resolução 194, que decide permitir aos refugiados que o desejem o regresso às suas casas com direito a compensações pela destruição dos seus bens. Só que em 1948, David Ben Gurion, então primeiro-ministro, declarou: "Devemos impedir o seu regresso a qualquer preço". Hoje são mais de três milhões.

Na sequência da Guerra dos Seis Dias, em 1967, Israel ocupa o resto da Palestina (Cisjordânia, Faixa de Gaza e Jerusalém-Leste). Ao arrepio da Resolução 242 do Conselho de Segurança da ONU, nesse mesmo Verão a colonização dos territórios ocupados começa com a construção de novos colonatos. Lucidamente, David Ben Gurion defende a não colonização, prevendo as consequências da transformação do seu país em potência ocupante. Hoje existem mais de 200 mil colonos instalados em colonatos nos territórios ocupados.

Esta é a raiz real e profunda do conflito. Só com a retirada do exército israelita para as posições anteriores às ocupações de 1967 e a destruição do muro; só com o desmantelamento de todo o sistema de colonatos israelitas; só com o fim do cerco a Gaza; só com a solução da questão dos refugiados palestinianos de acordo com as resoluções da ONU, só com o reconhecimento do direito do povo palestiniano à edificação do seu Estado, livre, independente e viável com capital em Jerusalém Leste, lado a lado com Israel; só verificadas todas estas condições é que poderemos falar de uma real paz justa e duradoura na região.

Em Israel e no campo palestiniano todos os intervenientes políticos o sabem. Dos dois lados há quem lute consequentemente por esta solução. Dos dois lados há quem a procure destruir e inviabilizar.

A chamada comunidade internacional omite que, quer na sociedade israelita, quer na sociedade palestiniana, há forças sociais e políticas bem diferenciadas. Esconde que há radicais dos dois lados da barricada. E moderados. E forças consequentes. Fala do terrorismo palestiniano, que é real. Mas aceita de bom grado chefes de Governo terroristas (Begin, Shamir, Sharon) que afirmam alto e bom som que primeiro há que matá-los (os palestinianos) para só depois negociar. Que proclamam que a Palestina é a Jordânia. Aceita governos de Israel onde participam partidos, com vários ministérios, que, em palavras e actos, negam TODOS os direitos aos palestinianos.

Há quem seja incapaz de ver os acontecimentos de forma diferente da redutora divisão entre bons de um lado e maus de outro. Felizmente há outros exemplos. Como o professor Richard Falk, relator especial do Conselho dos Direitos Humanos da ONU. Como Daniel Barenboim e Mariam Said, os promotores da paz através da música. Como o PC de Israel e a Frente Democrática para a Paz e a Igualdade que nestes dias se reuniram em Ramalah com representantes de facções da esquerda palestiniana, incluindo a Frente Democrática para Libertação da Palestina, a Frente Popular para a Libertação da Palestina e o Partido do Povo Palestino (comunistas). Como os militares que se recusam a disparar e a bombardear a Palestina. Como tantos e tantos outros que em Israel e na Palestina defendem um processo de paz genuíno. O trágico, dizem, é que isto é possível. Só é preciso querer.

2009/01/09

Está a nevar!

A neve cai e acumula-se. Vi-a logo de manhã, em casa. Vejo-a do gabinete. Cada vez mais intensa.
Nunca tinha visto neve a cair em Portugal. Foi preciso vir para Braga.
Até me sinto num país desenvolvido.

2009/01/08

Novos blogues (1)

Pacheco Pereira sentenciou: o delito de opinião existe em Portugal. Alguns dos seus maiores fãs e mais fiéis seguidores, como o Pedro Correia, o Adolfo Mesquita Nunes e outra gente boa, decidiram dar razão ao mestre, criando... o Delito de Opinião. Boa sorte à equipa e boas postagens.
Outros blogues não tão novos mas que descobri recentemente são o Em Órbita, do Nuno Pinho, e o A Pente Fino, um blogue com um conceito original e cuja leitura recomendo a todos os jornalistas.

2009/01/07

A arte e os seus críticos; a ciência e os seus inimigos

Não quero manter aberto este tema por muito tempo: para mim, o Cinco Dias é página virada. Tenho pena de ter saído (gosto muito de alguns dos blógueres que fazem o Cinco Dias), mas apesar de não simpatizar com corporativismos não poderia continuar num blogue onde um indivíduo inclassificável faz um ataque a uma classe e se julga no direito de designar e distinguir "verdadeiros cientistas" de supostos "empregados da ciência". Se eu for "empregado da ciência", sê-lo-ei com muita honra; espero que Carlos Vidal, assistente da Faculdade de Belas Artes, seja pelo menos um digno empregado da arte. Não tenho a certeza. Entretanto faço notar as questões pertinentes colocadas por Sérgio Lavos e agradeço as palavras simpáticas.

2009/01/06

"Afinal o amor pode durar para sempre"

Não é todos os dias que encontro referências à universidade onde me doutorei nos jornais portugueses. E que pensará o João Galamba deste tipo de estudos?

2009/01/05

"Se a Europa se cala, que falem os europeus!"



5 de Janeiro, 18 horas, Largo de S. Domingos (Rossio) Lisboa
8 de Janeiro, 18 horas, Embaixada de Israel, R. António Enes, Lisboa
(via Arrastão).

2009/01/02

Resolução de Ano Novo

Carlos Vidal não tem aquele dom tipicamente bushista (e de que eu tanto gosto) da transparência – “I mean what I say and I say what I mean”, como diria a desbocada matriarca Barbara (ou pelo menos a sua caricatura do Conan O’Brien). Vidal brindou-nos durante uma ou duas semanas com textos sobre a temática da arte “que não é para toda a gente”. Apontei algumas contradições nesses textos, mas escapou-me na altura a mais óbvia: dizer que algo não deve ser acessível a todos é a melhor maneira de despertar curiosidade sobre esse algo. É um recurso do artista que nos quer provocar. No fundo, o homem só quer que a gente ligue alguma coisa ao que ele escreve, e fica nitidamente nervoso se não lhe prestam a atenção de que se julga merecedor: recorde-se por exemplo até que ponto ele chegou só porque o Daniel Oliveira não lhe respondeu a um comentário no blogue.
A melhor coisa a fazer seria portanto o contrário daquilo que ele tão enfaticamente me pede, apesar de ser o contrário do que quer (estão a ver onde entra a cena dos Bush?): justamente, não lhe ligar nenhuma. Tentar não dar por ele. Passar por cima dos seus textos. No fundo, fazer como se ele não existisse.
Só que tal seria difícil (dado o estilo espalhafatoso do autor, cheio de imagens, negritos e maiúsculas, e a sua linguagem assumidamente populista). E mesmo que fosse fácil seria absurdo. Porquê? Simples: é evidente que quando lemos um blogue colectivo deve haver uma certa identidade entre os seus elementos. Aliás, o blogue deve ter uma identidade como um todo. Caso contrário, não faz sentido que as pessoas se juntem para escrever.
É claro que os membros de blogues colectivos não devem concordar em tudo entre si, e podem (e devem) debater, e mesmo polemizar. Mesmo assim creio que devem ter algo em comum. Era assim que eu concebia o Cinco Dias: um colectivo de pessoas de esquerda, de tendências diferentes, que fossem capazes de debater entre si. E é naqueles dois aspectos que surgem os meus problemas com Carlos Vidal. Para começar, há muito pouco que eu possa a dizer que tenho em comum com o senhor. Qualquer leitor do Cinco Dias poderá aferir isso, das divergências que temos tido e têm sido manifestas. Dos seus textos, os únicos com que posso dizer que estou minimamente de acordo são os recentes sobre o conflito israelo-palestiniano. É muito pouco como denominador comum para escrevermos no mesmo blogue, a menos que fosse um blogue exclusivamente sobre este conflito. Mas o principal problema tem a ver com o outro aspecto: a capacidade de debater. E creio não ser injusto ao verificar que essa capacidade em Vidal é praticamente inexistente. Tirando dois ou três louvaminheiros, Vidal não é capaz de ter uma conversa com um comentador sem lhe colar rótulos políticos, ameaçar censurar (por opiniões “impróprias”) ou mesmo insultar. Os insultos ocorrem principalmente quando Vidal faz a sua jogada preferida, que já deve ser conhecida de todos: foge do assunto em debate e desvia-o para a sua área de eleição (a arte). Mesmo que ninguém tenha falado, mesmo que ninguém queira falar de arte, Vidal faz questão de responder a todos os debates como se debates de arte se tratassem, para os assuntos que ele domina, para então poder fazer o que melhor sabe: aplicar “argumentos” de autoridade (que não são argumentos nenhuns) e chamar ignorantes aos seus interlocutores. Foi assim quando escrevi um texto sobre Manoel de Oliveira, um texto que não era de forma nenhuma destinado a Vidal e onde eu exprimia a minha perspectiva de amador perante a obra do cineasta (um direito inalienável que qualquer espectador tem). Vidal quis ver naquele texto uma crítica cinematográfica (algo que não era nem nunca pretendeu ser) e respondeu com a famosa série “a arte não deve estar acessível a todos”.
Um exemplo mais recente passou-se na reacção a este texto da Palmira Silva. O texto original não tem absolutamente nada a ver com arte mas que foi logo atacado nos comentários por Vidal como se tivesse (leiam e confirmem). Nos exemplares comentários de Vidal (que Sokal gostaria de ler) podem ler-se afirmações deliciosas como “Quando estou por Londres ou Paris, o que se lê é Deleuze, Foucault, Derrida e não Sokal. Pelos vistos, Sokal, agora inesperadamente desenterrado (vá lá saber-se porquê) não existe em lado nenhum.” Ou “Sokal, ele está esquecido e Lacan ou Deleuze ou Derrida são dos autores mais importantes em qualquer ramo de estudos nos Estados Unidos e ocupam mais de metade das estantes de filosofia entre Londres e Nova Iorque, etc, etc. Felizmente, sinal de inteligência. Sokal, zero. O obtuso já desapareceu. Finito. ZERO !!”

Recorde-se que quem escreveu isto (ou, noutra parte, “Fico a saber que de arte e estética contemporânea nada sabem. (…) Passem pelo Prado e vejam o Rembrandt, que é o que deveriam fazer para respeitarem os outros e aquilo que não sabem. Ou comecem pelo Giotto, já agora. (…) Vão-se lixar com o vosso Sokal”) insurgia-se contra a arte “popular” e os artistas que são apreciados por multidões mas que não deveriam ser para todos (mas pelos vistos a popularidade já serve se for para avaliar “os livros que se lêem” em Paris ou Londres ou Nova Iorque). Mas o mais engraçado é a forma deste artista avaliar um cientista: para Vidal, a forma de um cientista provar que está vivo será não escrever artigos, dar palestras e ser citado pelos seus pares (algo que Sokal continua a fazer muito bem), mas vender uns livros que sejam discutidos em círculos filosóficos! (Para governo de Carlos Vidal o caso Sokal continua bem vivo e tem tido novos desenvolvimentos – ver a cronologia completa aqui.)
A questão abordada pela Palmira neste texto – o combate ao obscurantismo resultante do relativismo pós-moderno - é para mim de extrema importância. É que não é só nos mercados financeiros especulativos que há fraudes. Neste caso trata-se de uma denúncia de fraudes intelectuais. Para mim este é um combate político absolutamente prioritário, e é-me difícil partilhar um blogue com quem a ele se oponha, principalmente da forma tão veemente como Vidal o faz. Para além de, em termos estritamente pessoais (e profissionais), ser-me difícil partilhar um blogue com quem julga – escreveu-o duas vezes, aqui e no Jugular – que “Badiou, como Cavaillés, Albert Lautman (…), são filósofos matemáticos (alguns só matemáticos) que sabem mais - tecnicamente - de matemática que todos os matemáticos cá do burgo juntos.” (Paul Cohen já é outro nível, mas desse não falou Sokal.) Há limites mínimos de respeito; quando não existem por parte do nosso interlocutor, não adianta manter uma discussão. Para além de que em matemática, e em ciência em geral, não estamos habituados a esse tipo de “argumentos” de autoridade. Pelo menos a avaliar por Vidal, esta é uma diferença fundamental entre ciência e arte. Dito isto, é claro que esta opinião é risível, e muita gente se vai rir dela. Como já disse várias vezes, visto de fora Carlos Vidal é muito cómico. Quem não o consegue ver de fora… deve sair.
Para que fique bem claro, e em resumo: o meu problema com Carlos Vidal nem são propriamente as suas posições (políticas e não só), apesar de eu discordar totalmente de grande parte delas. Não teria problemas com posições divergentes se Vidal as soubesse defender. O problema é que Vidal apresenta as suas posições num estilo populista sem nunca se preocupar em argumentar para as defender, e quando confrontado é nítido que não sabe debater (algo que – já o escrevi e reitero – é característico de muitos sectores do meio académico português: não é só Carlos Vidal). O meu problema com Vidal, bem mais do que de opiniões, é de estilo. Afinal o estilo sempre serve para alguma coisa!
Dito isto, e porque Carlos Vidal é membro do Cinco Dias, não estou disposto a continuar a pertencer a este colectivo. É uma decisão difícil, porque aqui encontro pessoas com quem é um prazer partilhar um blogue. Era isso que ainda me fazia hesitar. Ainda no passado fim de semana, após me ter encontrado com o Nuno Ramos de Almeida, não pensava tomar esta decisão. Digamos que a questão do Sokal me fez ver claramente que o equilíbrio que o Nuno nos pedia (a mim e ao Carlos Vidal) era instável e na prática impossível de alcançar, a menos que eu não escrevesse o que quisesse escrever (algo que nunca ninguém impediu ninguém no Cinco Dias) ou declarasse sistematicamente “para mim, o Vidal não existe”. Em ambos os casos é melhor sair. Deixo um abraço a todos os outros colegas de blogue e um especial ao Nuno, que me convidou e a quem serei sempre grato. Nuno, desculpa qualquer coisa mas, convenhamos, depois disto, se eu não saísse doentinho seria eu.

2009/01/01

Y quiero que me perdonem por este dia los muertos de mi felicidad



Pequeña serenata diurna, Silvio Rodriguez e Chico Buarque, Cuba, 1983